quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Tudo certo, tudo certo...


Ele passa o dia andando descalço nas ruas e calçadas ásperas da cidade. Seu pé endurece, formando uma espécie de crosta preta e resistente. Mas isso não basta. Ainda assim, feridas avermelhadas começam a surgir. Buracos ensaguentados se formam e o pé cresce num inchaço doente. Uma infecção começa a se alastrar e as feridas aparecem perna acima. Aquilo não é apenas sangue. Outros líquidos esbranquiçados começam a escorrer das pequenas feridas que, com o tempo, se abrem e viram enormes rombos molhados e podres. A perna inteira é uma doença. Uma aberração. Uma estrutura orgânica preta, disforme, embolotada e gosmenta. Ele amarra panos velhos e sujos em volta das feridas, mas nada adianta. Ele para de passar dias inteiros andando. Ele resolve se sentar.

Numa esquina qualquer, ele estende uma coisa doente e morta que se liga ao seu corpo. Ao lado dela, a outra perna continua funcional - embora seguindo o mesmo caminho daquela doente. A coisa ocupa a calçada inteira. As pessoas que passam por ali simplesmente desviam como fazem com merda de cachorro. O cheiro é até parecido, mas na verdade é pior: merda humana.

Aquele sujeito inteiro carrega em si um cheiro de comida estragada mal digerida. É um cheiro forte e pesado, mas que remete a algo leve e pastoso. Uma diarréia amarelada está sempre escorrendo pelos os farrapos imundos que ele usa como calça. Ele também veste uma blusa que parece ter sido vermelha um dia e, por cima dela, uma jaqueta marrom que foi encontrada no lixo há alguns meses. Não importava o sol que fizesse, a jaqueta era usada todos os dias do começo ao fim. Estava azeda, com um cheiro forte e agudo de suor.




Sentado ali, no sol, ele mija. Um líquido amarelo e ardente começa a molhar sua calça e se espalhar pela calçada, exalando um odor quente e penetrante. Pra qualquer pessoa, um minuto ali perto já seria mais do que insuportável ao olfato. Pra ele, no entanto, aquilo já não queria dizer mais nada. Os cheiros se tornam irrelevantes e as pessoas apenas desviam da poça amarelada que se forma ali embaixo.

Tendo um dos olhos completamente vermelho, o sujeito fica sacudindo um pequeno pratinho com algumas moedas. Uma barba densa e escura cobre seu rosto. Pedaços de refeições tiradas do lixo continuam pendurados ali, atraindo duas pequenas moscas que rondeiam a região. Uma delas apela, pousando na boca, ao lado de uma ferida esverdeada e um pedaço de frango. A outra, sem motivo aparente, entra no nariz do indivíduo. O bigode sujo e preto foi endurecido pelo muco que lhe escorre das narinas. A mosca passa alguns instantes se esforçando pra adentrar o local. Ele a ignora.

- Meu Senhor, meu Deus, meu Senhor…

O homem repete uma série de expressões divinas conforme usa seu pratinho de moeda como uma espécie de instrumento musical. Com um olhar triste e ao mesmo tempo insano, ele olha pra todos os lados. Sua boca seca e dilacerada parece não fechar nunca, numa espécie de exaustão. Se não fossem seus movimentos contínuos e mecânicos, aquele sujeito poderia ser facilmente confundido com um cadáver.

Mas não o é. Ali dentro daquele ser, existe um coração que ainda bate. Um coração pálido e fraco, que bombeia um sangue seco e ralo por um corpo já gasto e decomposto.

Tum-tum, tum-tum, tum-tum...

Dentro de mim, um músculo firme e forte se contrai num rítmo impecável. Num tom vermelho vibrante, meu sangue morno e saudável circula em alta velocidade por todo o meu organismo. Tudo em mim opera como uma verdadeira orquestra conforme nutrientes são bombeados em todas as direções, banhando meu interior. Suspiro orgulhoso e inalo o ar fresco e sutilmente perfumado do carro. O oxigênio é absorvido pelos meus pulmões límpidos e exemplares. Enquanto isso, pela janela, vejo o dia quente e bonito do lado de fora. Sorrio com lábios rosados e dentes brancos. Esse bairro é horrível mas adoro passear por ele.

Os muros são repletos de graffiti. As calçadas esburacadas são dominadas por mendigos e móveis inutilizados. Um moleque de 11 anos fuma crack sentado em uma TV velha e quebrada. Logo adiante, vejo um maluco com um canivete ameaçar uma prostituta descabelada e imunda. Cenas noturnas, por aqui, acontecem em plena luz do dia.

Porém, observo tudo sob uma iluminação suavizada pelos meus óculos escuros.

- Mais devagar, por favor...

Com uma revista de economia no colo, continuo apreciando a vista pela janela. O motorista diminui a velocidade, já familiar com esse meu costume. Sempre gosto de passar por aqui no caminho do aeroporto pra voltar pra casa após algum encontro de negócios nessa cidade decadente.

- Tudo bem - digo a ele. - Vamos lá.

Ele acelera e eu volto a folhear a minha revista. Leio algumas besteiras e desisto. Perco a concentração e volto a olhar pela janela, satisfeito.

- O mundo é maravilhoso - comento.

O motorista me observa silencioso pelo retrovisor. Saímos daquele bairro e eu me sinto renovado. Não é uma sensação de superioridade que me deixa nesse êxtase calmo e orgulhoso. Eu não desprezo essas pessoas ou as considero inferior. Eu as entendo. Eu as amo. O meu orgulho, na verdade, não é por mim. É por elas próprias.

Tudo bem, talvez exista uma pitada de sadismo por parte de mim. Mas, por outro lado, também existe uma bela xícara de sadismo por parte desses marginais. A crueldade deles com eles próprios já se tornou uma bricadeira.

Se você prestar atenção, eles parecem gostar dessa auto-destruição. É uma atitude sadomoquista: eles mergulham numa nova dimensão de caos e sofrimento e de repente estão erguendo a bandeira como ávidos patriotas. Se torna algo instrínseco. A miséria torna-se parte deles e agora, de repente, eles parecem estar querendo provar isso para o mundo todo. Eles cospem, fazem barulho, jogam lixo no chão e mijam em si mesmos. No fundo, eles exaltam o próprio sofrimento pra mostrar que estão sofrendo.

É engraçado que ninguém se importa no final das contas. Esses infelizes estão colecionando lixo, desorganização e odores desagradáveis mas não existe ninguém que vai dar a eles um troféu. Mas assim como nós, eles também não se importam. Eles fazem isso pra sentirem o gosto da própria miséria; cada um quer sentir a própria indiferença consigo mesmo. Eles querem explorar até quanto eles podem se reduzir. Como disse antes, a coisa vira um tipo de brincadeira. Um desafio. É uma espécie de hobby ou competição insana entre colecionadores masoquistas. O mais decadente, indiferente e selvagem… vence.

Se eu sou sádico por me confortar ao vê-los assim, eles não podem estar muito distantes de também o serem ao glorificarem a própria miséria.

De qualquer forma, não é essa a questão por trás do meu bem-estar. Essa pitada de humor negro é só a cereja no topo dessa exposição de horrores. O foco do prazer está longe de consisitir simplesmente em vê-los à beira da completa auto-destruição. Isso é superficial. O que realmente me agrada é ver que o mundo, nesse exato instante, está em perfeito funcionamento.

Ninguém percebe, mas realmente está. As pessoas sempre acham que isso tudo tá errado… mendigos pendindo esmola, prostitutas de 15 anos e assaltantes viciados em crack são terríveis sinais do apocalipse. Algo na nossa estrutura governamental deve ter dado terrivelmente errado. Enquanto algumas pessoas pensam assim, entretanto, a maioria sente nojo desses parasitas imundos. Num desprezo automático, concluem que todos os miseráveis são assim por nada mais do que pura opção pessoal.

Ora, um indivíduo senta na rua e pede dinheiro porque é preguiçoso. Uma criança chupa um pau por alguns trocados porque não quer estudar. Um viciado em crack é um marginal inconsequente simplesmente porque não tem vontade de fazer mais merda nenhuma. É simples assim. E no final das contas, a grande maioria das pessoas se incomoda com isso e sente que algo no mundo falhou. Seja no governo ou nos indivíduos, algo está dando errado. Mas não. Não é o caso. As pessoas têm dificuldade pra perceber, mas está tudo em seu devido lugar. Não há nada de errado com o mundo. Tudo está certo.

Veja: se um moleque cheira cola, é porque ele não tem mais nada que preste nessa vida. Se ele não tem mais nada que preste nessa vida, com cinquenta centavos e um sonho esperançoso eu o coloco pra trabalhar numa fábrica por 22 horas seguidas.

Não se gasta nada com o seu salário. Os produtos ficam mais baratos. Famílias inteiras economizam dinheiro. Compram-se mais confortos. Vidas e vidas melhoram. É fácil entender, o raciocínio é esse: se a sua vida é boa, a vida de alguém é uma merda. Se você pode ser rico, é porque alguém também pode ser pobre. É simples. A sua vida só é fácil porque a vida de alguém está difícil.

Dessa forma, então, conclui-se que vidas difíceis fazem parte do funcionamento natural das coisas. Não se sinta uma pessoa ruim… isso não é consequência do seu bem-estar, e sim a causa. A culpa não é sua, você está apenas vivendo as coisas como elas são e já eram antes. Você não está empobrecendo ninguém; os pobres é que estão te enriquecendo. Lembre-se de que você não é a causa, e sim a mera consequência do sofrimento alheio.

Pode parecer triste ou qualquer coisa, mas a miséria simplesmente existe e isso é um fato, não é mesmo? Então, se já existe, que não seja desperdiçada. Façamos bom uso dela.

Claro que não precisava de tanta miséria como temos atualmente, mas no fundo é sempre bom que tenhamos uma margem de segurança. É preciso que estejamos supersaturados de desgraça e pobreza pra garantir que sempre terá alguém nos confortanto pela vaga promessa de uma mínima melhora.

Não sei se estou sendo devidamente claro, mas é com isso que eu me sinto bem de verdade. Andar de carro por um bairro decadente como esse é como revisitar a poupança pra apreciar alguns milhões de dólares acumulados. Em caso de emergência, você sabe: é só ir lá pegar alguns trocados. Isso não é cruel. Essa segurança não se baseia em sadismo. Se baseia em satisfação, apenas… se baseia na ideia de que está tudo fluindo como deveria e que até mesmo o plano B já está preparado. Como disse, tudo está certo. Esses lugares, "horríveis", são apenas a prova disso.

Mas a coisa não precisa acabar aqui. Estamos quase lá, mas ainda não atingimos a perfeição socio-econômica. Isso é utópico e inalcaçável, pois sempre será possível melhorar as nossas vidas e acumular reservas para nunca corrermos o risco de retrocedermos. A igualdade tem um limite. Mas a desigualdade sempre poderá aumentar.

Podemos melhorar. Quanto mais na poupança, mais seguros ficamos pra vivermos nossas vidas. Quanto mais gente pobre, maior a possibilidade de ser rico e mais rico e garantir o conforto vigente. Pense bem: você saberia me dizer de onde viriam os faxineiros das nossas instituições se fossem todos formados em direito e medicina?

As coisas são assim, não há outro jeito. Estamos sempre precisando de gente sobrando, desempregada. Sempre precisamos de um resto. Precisamos estar sempre supersaturados. Um homem com a perna podre, sentado no chão e pedindo esmola, no momento, pode parecer lixo: ele é quem restou dentre quem já atribuímos funções duras e degradantes. Pode parecer uma ambição desnecessária, mas é sempre importante ter uma certa quantia na poupança para casos de emergência. É importante haver sempre uma segurança e é ESSA segurança que o tal sujeito representa.

Entenda isso. O mundo está ótimo. Aquele homem que dorme no chão não é um problema, e sim a solução pra um possível problema futuro. Algumas pessoas pensam o contrário, mas aquele sujeito passando fome é um reflexo do mundo dando mais do que certo. Pense nisso: se ele existe, é porque sobrou. E, se sobrou, é porque existe alguém trabalhando por um mero pedaço de pão e um cuspe na cara. Famílias enriquecem. Vidas melhoram.

Devo relembrar que toda essa miséria não é culpa minha ou sua. Com já disse, não somos cruéis. Somos a consequência e não a causa. O que aproveitamos é apenas a oportunidade em um mundo em que as coisas são como são. Em termos químicos, sabe-se que nada se cria, tudo se transforma. Na nossa vida, também, nada pode ser simplesmente criado ou destruído. As coisas só se transportam e se reacomodam assim como ar escorrega de um lado pro outro quando se esmaga uma bexiga cheia.

A cama daquela mendiga que dorme no banco da praça está no quarto de visitas da sua casa em Miami. O almoço daquele menino de rua que lhe pediu uns trocados está guardado no seu freezer. As coisas estão sempre em algum lugar. Se alguém não está usando, é porque outra pessoa está. O fato de eu ter 5 TVs em casa não quer dizer que eu as tomei de pobres infelizes. Quer dizer apenas que elas sobraram pra mim e eu as comprei.

As coisas fluem e se acomodam. As coisas são como são. Ninguém pode dizer que eu sou reponsável pela desgraça dos outros. Afinal, lembre-se disso: uma pessoa está sempre desempregada apenas porque quer.

Como já diz aquele ditado: "a vida é dura pra quem é mole". Então, se tem um homem na ruas pedindo alguns centavos aos outros, é porque ele não passa de um vagabundo oportunista querendo se aproveitar da sua boa-vontade e de seu dinheiro suado feito no escritório. Se um cara botou uma arma na sua cabeça e roubou seu carro, é porque ele é um psicopata egoísta e agressivo por natureza própria.

A desgraça é a culpada da própria desgraça. Nem eu e nem você temos algo a ver com as decisões das pessoas. Um criminoso vai ser sempre o responsável pelo próprio crime. Sempre tentam arrastar a culpa pros outros, mas existem pessoas que nascem nos esgotos e crescem como grandes empresários de sucesso. Isso acontece, é realmente possível. Existem inúmeras histórias sobre isso e essa é a prova mais óbvia de que todos nós somos dados as mesmas oportunidades para subir na vida. Com a capacidade de esforço e estudo que todos temos de nascença, podemos superar qualquer condição. Tudo é superável com esforço e trabalho duro.

Tornar-se um marginal, então, é a opção dos fracos e inescrupulosos. Se você pede moedas pras pessoas e assalta postos de gasolina de madrugada, você é um verme por natureza. Essa opção foi SUA e isso NÃO É responsabilidade minha ou de ninguém mais. Vivemos livres pra governar nossas vidas e eu tenho certeza de que vai sempre existir uma alternativa à barbárie e à vagabundagem. Eu mesmo, aliás, a ofereço. Como já disse: trabalhe como um asno e receba um pedaço de pão e um cuspe na cara. Ou então, pegue numa metralhadora, fique rico e seja caçado e exterminado como o resto da escória.

Muitos criticam essa estrutura, mas não me culpe por dar oportunidades aos outros. É assim que o mundo funciona e eu não sou hipócrita. Apenas compreendo e sigo o fluxo natural das coisas. Não sou uma pessoa ruim. Pra qualquer empresário, é sempre bom que exista mão-de-obra barata. Isso é pura lógica. Não me culpe se mão-de-obra tão barata existe em toneladas e se todos se submetem a condições degradantes. Se você aceita migalhas por meses de trabalho braçal e se reproduz como um coelho, a culpa não é minha.

Como já disse, as pessoas têm liberdade pra fazer o que quiserem. E tirando criminosos e marginais, existe sempre aqueles trabalhadores dispostos a crescerem na vida. As pessoas só são desempregadas porque querem ou são moles e mesquinhas. As que não são assim, trabalharão duro mesmo debaixo de insultos e condições degradantes. A vida simplesmente funciona dessa forma e as pessoas aceitam esse destino. Não me acusem de torturador. Eu apenas ofereço as opções e as pessoas é que as aceitam por livre e espontânea vontade.

Sim, talvez haja toda uma propaganda ideológica pra transmitir a ideia de que as grandes cidades são uma terra de oportunidades e bons trabalhos. O povo sempre acredita que existe uma quantidade desproporcinalmente enorme de empregos maravilhosos para todos eles. Então, ao invés de entrarem pra marginalidade, os bons trabalhadores logo embarcam em uma gloriosa jornada para o sucesso.

Bem, o sonho pode não ser tão fácil quanto parece, mas também não é culpa minha se acreditam nessa ilusão utópica. Eu cuido do que é meu e garanto que meus filhos estudem em colégios particulares e que tenham uma boa educação. Se as massas são burras, é porque ninguém se responsabilizou para que tivessem um senso crítico inteligente. Elas correm atrás do que bem entenderem. Ou mal entenderem.

Ninguém está preso em nada. Vivemos em um país livre. Eu cuido do que é meu e você cuida do que é seu. Se existe gente estúpida, é por incompetência ou por estratégia inescrupulosa de alguém. Eu não me importo, pois superei isso e cumpri a minha parte. Não vou me envolver pois já saí por cima. Até onde me interessa, o mundo está fluindo precisamente como deveria: aqueles que trabalham terão o que merecem. Os desgraçados, enquanto isso, serão sempre os responsáveis pela própria desgraça.

É fácil compreender. E é tão simples e convincente, aliás, que até os próprios miseráveis aceitam que a miséria é uma questão de opção. Eles são ensinados assim e desenvolvem a ingênua crença num mundo em que uma pequena atitude pode deixar alguém milionário. Acreditam realmente numa vida em que ser rico é a coisa mais fácil do mundo e ser pobre é para imbecis preguiçosos e fracassados. Você se sente como um preguiçoso imbecil e fracassado? Então apenas siga a correnteza e vire um magnata da cidade grande. Pronto. Aceite um pedaço de pão e um cuspe na cara. Esse é o caminho natural daqueles que se esforçam. Ninguém é melhor do que os outros por ser rico, mas apenas ficam ricos aqueles que são melhores do que os outros.

Talvez não seja bem assim. Mas, se é verdade ou não, as pessoas acreditam e é assim que o mundo funciona. Note as desproporcionais aglomerações urbanas. Abra os olhos e escute os sotaques: as pessoas vêm do mundo inteiro alimentadas por ilusões gananciosas de sucesso e riqueza. Elas vêm de longe pra limpar o seu banheiro, servir sua comida e lavar as suas roupas por um preço acessível. Elas aceitam isso. Elas querem se esforçar pra provar que são melhores do que alguém.

Vai saber o que se passa na cabeça delas. Talvez pudessem viver bem melhor em seus países e cidades de origem. Poderiam viver na paz da simplicidade. Viver como hippies, como índios, como fazendeiros ou como qualquer outra coisa que não exige um computador 3D de 50 polegadas. Porém, é esse o sonho que eles desenvolvem. É essa ambição irresistível que os atrái.

Vai ser sou eu quem vende esse sentimento esperançoso, mas esse é apenas o meu trabalho. Quero vender meus produtos e quero que sejam acessíveis. Eu quero te convencer a comprá-los e ofereço, por questões supracitadas, um preço baixo. Eu não sou uma pessoa ruim. Sou uma pessoa boa, funcionando como o Deus de uma terra onde o Diabo sempre existiu. Afinal, se existe o ruim, existe bondade sobrando em algum lugar. Se existem pobres, existem ricos. Se apertam um lado da bexiga, o ar escapa para o outro. Então, se o Diabo já está lá, alguém precisa preencher o papel de Deus.

É aí que eu apareço. Melhoro vidas e ofereço oportunidades iguais a quem estiver disposto. Isso jamais poderia ser considerado crueldade. Se acreditam em propagandas utópicas, digo pela milionésima vez que somos iguais e livres pra tomarmos atitudes baseadas em quaisquer crenças que tivermos. Eu não iludo ninguém. As pessoas iludem a si próprias. Deus trata todos como iguais e ama todos aqueles que também o amam. Deus é assim. Deu a todos o livre-arbítrio pra que tomem decisões e vivam com as consequências de desrespeitá-lo.

Não há o que discutir. Esses infelizes que viajam de longe para serem explorados não estão acorrentados ou escravizados por ninguém. A escravidão acabou há séculos por motivos óbvios: trabalhadores livres são mais baratos do ter que dar alimentação e moradia pra gente acorrentada. Agora, todos são iguais e precisam trabalhar como sempre e ainda por cima pagar pela própria alimentação e moradia. E para isso, pagarão a mim, a você, ou a quem quer que ofereça os respectivos serviços. A liberdade funciona assim e é melhor e mais justa para todos. É cada um por si. E se as pessoas querem trabalhar pra você apenas pra pagar a você mesmo pelas coisas que elas produziram, é porque elas concordam que é assim que subirão na vida e chegarão ao seu lado.

Viram alguma besteira na TV. Observaram pequenas lendas que surgiram aqui e ali. Aos poucos, espalhou-se o boato. E numa pequena vila no meio do nada, alguém se deu conta de como uma pessoa pode ser superior por ter dinheiro - ou como, por ser superior, tem dinheiro. Aprenderam assim que ter um carro desnecessariamente ultrassônico no meio de engarrafamentos, por algum motivo óbvio, é melhor do que ter uma charrete. Se são estúpidos ou gananciosos, não me interessa. Eu não obrigo ninguém a tomar nenhuma decisão. A propaganda é a mesma pro mundo inteiro e temos todos liberdade pra tirarmos as nossas próprias conclusões e seguirmos com nossas vidas. Todos têm a liberdade de obedecer as regras e trabalhar duro. Ou então, a liberdade de passar fome, ser caçado pela polícia ou ter uma vida medíocre numa favelinha do interior.

Mas se você acredita no seu potencial, nada te impede de ir a fundo. Vá em frente. Escravize-se. Viver na cidade é infinitamente melhor do que viver plantando besteiras no campo ou pescando caranguejos numa ilhazinha abandonada. É óbvio que trabalhar o dia inteiro pra depois sentar num enorme sofá e comer diante de um telão é superior a qualquer outra forma de viver a vida. Todos serão mais felizes num antro de tecnologia e prédios imensos. Metrópoles são impérios paradisídicos de oportunidades e riquezas. Viver na simplicidade é conformar-se com o medíocre e retornar à condição selvagem de animal. Largue essa vida. Venha gozar dos prazeres que o seu esforço e dedicação merecem. Se você não é um imbecil preguiçoso e fracassado, terá uma vida digna.

Sim, acredite no canto da sereia. Em meio a todas aquelas pessoas bem-sucedidas e construções impressionantes e gigantescas, existirá uma oportunidade pra você também. Alguém, no meio de toda aquela gente, vai reconhecer a sua pena. Alguém vai lhe oferecer uma chance inigualável de subir na vida. Na forma de uma triste senhora, virá a oportunidade de sucesso. Uma mão magra e murcha se abrirá e deixará cair uma série de moedinhas efêmeras em seu pratinho sujo.

Siga seu sonho e isso já não é mais problema meu. Sou uma pessoa boa, cumpro o meu papel natural na sociedade e as pessoas vão poder sempre estar onde quiserem estar. Basta que mereçam. Elas que se decidam e corram atrás de suas crenças. Elas que acreditem em Deus. Sejam ovelhas. Pensem que aqueles que sofrem serão recompensados mais tarde e terão um futuro melhor do que os preguiçosos conformistas que só pensam no presente e reservam para si um futuro infernal de decadência e mediocridade. Tolere o sofrimento. Aceite a punição pelos seus pecados. Repudie qualquer possibilidade de revolta e seja estupidamente pacífico com a ideia de manter o sistema para que, um dia, você atinja o outro lado. Sonhe que em algum momento, até mesmo que depois da morte, você será recompensado. Está tudo certo. Tudo certo. Iluda-se com essa ideia e o problema é seu.

Então, finalmente, chego ao aeroporto.

Após um engarrafamento caótico de pessoas se acomodando, finalmente saio do meu carro e estico as pernas. Entro no aeroporto e tiro os óculos escuros. Vejo uma família de imigrantes chorar de emoção ao botar os pés naquele chão. Sorrio. Quando eles chegam, eu estou indo embora. Uma conversa no banco e uma visita à poupança e já foi tudo resolvido.

Guardo os óculos e entro no meu jato particular, livre do trânsito das massas. Bebo um gole de whisky e volto pra minha casa, numa pequena ilha - belíssima e surpreendentemente abandonada - que comprei no pacífico. O povo local teve que ir para outro lugar, e uma das nativas de seios fartos acaba de perguntar se eu gostaria de mais alguma coisa. Por enquanto não.


2 comentários:

Anônimo disse...

Ler essas besteiras dá uma vontade imensa de virar anarco

xDDDre disse...

!?