Ricardo não era uma pessoa. Era uma estatística. Assim como todos nós, Ricardo estava ciente disso. Mas apesar de se reconhecer como apenas um número, nada mudava nos detalhes de sua vida. Mantinha seus pequenos hábitos e peculiaridades e pouco se importava se estava incluído em um grupo de 1 ou 90% da população. Ele simplesmente vivia da forma que lhe convinha.
Ricardo era tranquilo, tinha os pais separados e morava com a sua mãe. Há um certo tempo, havia começado a namorar uma garota que conheceu na faculdade. Sem saber exatamente onde queria chegar com isso, Ricardo estudava geografia. Mal entendia o que um "geólogo" poderia fazer da vida além de dar aulas sobre o assunto. Ainda assim, mesmo com as aulas sendo em intervalos inconvenientes, Ricardo se sentia perfeitamente decidido com o seu curso. Em geral, passava sua lacuna semanal de 45 minutos ouvindo música ou conversando com os colegas. Às vezes jogava alguma coisa no seu portátil, às vezes lia algum livro divertido. Todas as vezes, no entanto, Ricardo tomava suco de manga.
Era um hábito engraçado. Seus colegas bebiam coisas mais comuns, mas Ricardo cismava em fazer uma pequena caminhada a uma padaria específica, só pra arrumar o seu suco de preferência.
- Cara, aqui tem o suco X - insistiam seus colegas.
- Eu não gosto - explicava Ricardo pela milésima vez, sorridente. - Eu quero o Y.
Todos ficavam pra trás e deixá-los por alguns minutos tornou-se um costume que se repetia praticamente em todos os intervalos. É curiosa a forma como surgem manias como essa.
Na verdade, biologicamente falando, Ricardo teve sempre uma preferência pelo suco de manga da marca Y. Não era uma decisão, era só a que mais agradava o seu paladar. Então, como Ricardo sempre teve essa coisa com marcas, a X nunca servia. Ele sempre precisava da Y.
Não havia nenhuma justificativa ideológica pra isso: Ricardo não se importava, queria apenas a marca que preferia e não se deixaria vender por preguiça ou comodismo. Ele estuda uma matéria que não sabe pra onde o levará, ele namora uma garota que mora quase em outra cidade e prefere um suco de manga Y que só vende em padarias e mercadinhos específicos. É a vida. Mas Ricardo não vai estudar matemática porque os horários são melhores, não vai namorar a vizinha porque ela mora mais perto e não vai beber o suco X porque o Y acabou. Tudo bem. Ele se esforça um pouco, cultiva um mínimo de paciência e, no final das contas, chega finalmente aonde queria chegar.
Essa era uma característica bem específica de Ricardo, mas se passava despercebida pra todo mundo. Até pra ele próprio. Todos notavam que ele possuía pequenas manias particulares, mas ninguém se dava conta de todo o comportamento inconsciente que o levava a fazer isso. Por exemplo, a história do suco começou com a mera questão da preferência, mas a ideia de tomá-lo em seu incoveniente intervalo de 45 minutos surgiu como em um comercial de TV.
Assim como se fazem comerciais pra que se tome refrigerante Y com pizza e refrigerante X com hambúguer, faz-se comerciais pra que se tome sucos de manga em intervalos do curso de geografia. O comercial de Ricardo, no entanto, não era um comercial que acontecia na televisão. Acontecia em sua própria vida. Um belo dia algo bom acontecia e ele tomava sorvete de maracujá (é, Ricardo sempre teve uma coisa com frutas). Então, sempre que uma situação parecia ter potencial pra lhe fazer bem, Ricardo acabava aderindo ao mesmo hábito que pôs em prática da última vez que a tal coisa boa aconteceu. É confuso e complicado tentar explicar, mas era como se o rapaz estivesse sempre conspirando para que tudo desse certo como já havia dado da última vez. Boas sensações relacionam-se a bons produtos e vice-versa.
Por causa disso, então, sempre que voltava da casa da namorada, Ricardo tomava seu teimoso suco Y. Isso nunca apareceu na TV, mas Ricardo sempre acabava montando seus próprios comerciais involuntários.
O tal do suco Y, aliás, sustentava-se apenas desses comerciais involuntários. Nunca se via, em lugar algum, uma propaganda da empresa Y. Ela já não se importava com anúncios publicitários e se baseava apenas na fidelidade de seus consumidores - pessoas que não se acomodavam nas maiorias e teimavam em seus gostos específicos.
Enquanto isso, o preço dos produtos não mudava. A fórmula dos sucos continuava a mesma. A embalagem, em muitos anos, só mudou uma vez - e foi apenas por questões ambientais. Assim como Ricardo, a empresa Y era uma empresa que se preocupava apenas em se manter íntegra. Se ela estava funcionando, não se importava se vendia apenas pra 1 ou 90% da população.
Infelizmente, isso não é muito saudável quando se trata de um produto em um universo capitalista. O que reina é a lei da oferta e da procura. Então, justamente por isso, o suco Y acabava se tornando cada vez mais raro em nome de sua teimosia. A empresa de sucos X, enquanto isso, fazia a festa.
Suas embalagens explosivas gritavam e se promoviam de forma diferente a quase toda semana. Comerciais na TV apresentavam situações ilógicas e criavam vidas inteiras para que as pessoas se convencessem de que o suco X seria extremamente necessário em um determinado contexto. Era um monopólio extravagante e que imperava quase que por imposição. No fundo, uma série de pessoas não devia se importar com o suco X. Ricardo até costumava dizer que o tal suco tinha gosto de máquina, porque parecia puramente sintético de tão artificial. Apesar de disso, o suco ainda era o que mais vendia.
Abre-se uma geladeira no supermercado e, só pra começar, a própria geladeira possui todo um design que já promove a marca X. O comprador comum, obviamente, não encontra motivo nenhum pra experimentar a marca Y e a deixa abandonada ali num canto com sua embalagem quase invisível. Talvez as pessoas prefiram a marca Y, mas a verdade é que elas nem chegam a experimentá-la. Os donos de mercados também não se preocupam em promovê-las. Vendo tantos comerciais e comprando apenas sucos X e vendendo-os todos, eles não encontram motivo nenhum pra valorizar a esquecida marca Y.
E foi assim que, numa noite como quase todas as outras, Ricaro deixou a casa de sua namorada e não encontrou seu Y de manga no mercadinho por onde sempre passava.
Aos poucos, o Y se esvaía da rotina de Ricardo. No começo, ele sequer percebia: os carregamentos do suco deviam ser pequenos, então eles acavam logo e ele entendia que devia esperar até que aparecessem mais. Depois de um tempo, porém, Ricardo viu que não apareceu. Mudou seu trajeto. Agora voltava com 3 ônibus da distante casa da namorada… mas pelo menos sentia-se realizado e tomava o seu glorioso suco Y em uma pastelaria oriental que encontrou nos arredores do bairro da menina.
Sua vida mudava e se ajeitava aos poucos. Às vezes o suco não aparecia, às vezes Ricardo tinha um certo trabalho para encontrá-lo. Tudo isso, na verdade, simplesmente fluía. Ricardo não vivia a sua vida pra susentar suas manias. As manias é que entravam delicadamente em sua vida. E, também delicadamente, parece que estavam saindo. Certo dia, Ricardo simplesmente não estava mais tomando o suco Y em momento algum.
No começo, ele não se deu conta disso. O Y saiu de mansinho assim como surgiu. Aquilo fazia parte dele de forma tão natural que ele nem se deu conta de quando havia deixado de fazer. Mas é claro que, como parte dele, Ricardo logo se deu conta de que algo estava faltando. Talvez fosse uma questão de gosto ou saudade, talvez fosse até uma questão nutritiva que criava em seu organismo a necessidade daquele suco. Poderia ser qualquer coisa, talvez até algum tipo de orgulho. Tudo o que se sabe é que, quando Ricardo se deu conta, ele viu que PRECISAVA do suco Y.
Começou a caçá-lo. Perguntava em todas a lojas e mercados e conhecidos. Um dia encontrou quatro em um jornaleiro. No dia seguinte, três. Dois. Um. O suco acabava assim que Ricardo, seu último e único consumidor, o encontrava. E aí, finalmente, o suco desapareceu por completo.
Ricardo sentiu-se ultrajado. Tinha um trauma de infância de uma bala de uva que havia deixado de existir. Aliás, pior ainda: ela continuou existindo, mas se vendeu e mudou completamente de sabor de um dia pro outro. Talvez estivesse vendendo menos, talvez aquela nova fórmula fosse mais barata. Não importava, a bala desapareceu do universo e Ricardo nunca mais se interessou por saquinhos surpresa na festa de seus coleguinhas da escola. Foi justamente por essa época que, pela primeira vez, Ricardo se viu como uma mera estatística inconveniente.
Pois bem, que isso não lhe acontecesse de novo. Não era possível que, em todo o mundo, ele fosse a única pessoa com o paladar agradado por aquilo. Não era possível que ele era o único indivíduo que ainda criava algum romantismo pessoal em torno dos produtos que consumia. Não era possível que todas as pessoas tivessem sido compradas por cores vibrantes e praticidade. Não, não era possível que ele estivesse sozinho.
Ricardo correu pra internet e descobriu fóruns e mais fóruns de centenas de pessoas discutindo. ONDE ESTÁ O SUCO Y? ONDE VENDE O SUCO Y DE MAÇÃ? ALGUÉM SABE COMO EU POSSO ENCOMENDAR UMA CAIXA DE SUCOS Y DE PÊSSEGO?
Ricardo entrava nos sites e lia as respostas. Algumas pessoas ainda pareciam se organizar e formar toda uma guerrilha revolucionária que boicotava os sucos X e criavam todo um mercado negro de vendas Y. Apesar de não se sentir sozinho, Ricardo já estava sem esperanças: o suco já não significaria mais nada se só fosse adquirido nesse contexto agressivo e desesperado. Pra tirar ainda mais as as suas esperanças, Ricardo se deu conta do pior: todas aquelas postagens datavam dias antigos de meses já passados. Era o fim. E pra finalmente nocauteá-lo da cadeira do computador, a notícia em um site de jornalismo:
"EMPRESA X COMPRA FABRICANTE DE SUCOS Y"
X havia eliminado a última resistência teimosa de seus rivais comerciais. Agora, o monopólio X estava absolutamente invencível. As pessoas de distraíram. As pessoas permitiram. Ricardo pensou em culpar a falta de atenção que Y dava a seus produtos… mas o que poderiam ter feito? Mudar a fórmula como fizeram os fabricantes de sua antiga balinha preferida de uva?
A culpa era das pessoas. Os consumidores preguiçosos. Os vendedores gananciosos. Alguns esquecem, alguns se vendem, alguns ainda tentam lutar. Mas sozinhos, não conseguem. Perdem a guerra por causa dos que esqueceram e se venderam. A partir de um certo ponto, não havia mais solução. A empresa Y já estava fadada ao fracasso: ou mudava, ou acabava. De qualquer jeito, seu princípio seria perdido e o produto não existiria mais.
Não importava: acabou. Ricardo entra em choque e questiona sua vida inteira em um transe de decepção. Questiona suas preferências, suas ideologias e principalmente a forma como as defendia. Ou a forma como, esse tempo todo, nunca havia defendido.
É, talvez ele devesse ter reagido com antecedência. Talvez não devesse ter ignorado o fato de ser uma porcentagem. Afinal, não existe um sistema maciço que reina o mundo. Não existem verdadeiros líderes ou representantes de coisa alguma. Tudo é feito de massas, de porcentagens, de seres humanos… no final, tudo é controlado por pequenos indivíduos com seus pequenos hábitos e costumes particulares. Ricardo teve um grande flashback sobre os seus estudos em geografia política. Gostava dos temas socio-econômicos mas de repente se sentiu fraco e inútil em um mar de pessoas cômodas que vendem e compram princípios novos com uma assustadora facilidade.
Tentava estudar direito? Tentava se formar em economia? Tentava ser presidente e mudar alguma coisa?
Logo Ricardo se viu preso em um paradoxo. Se não existe um líder no mundo, como ele ia deixar de ser apenas um indivíduo como todos os outros?
Sentindo-se derrotado no ponto "mudar ou acabar", Ricardo optou pela opção da empresa Y. Não ia atropelar seus princípios e se unir as massas pra tentar se salvar. Porém, sozinho, manter sua postura íntegra não traria grandes mudanças para o mundo. Sem esperanças, então, Ricardo continuou em sua pequena parcela da população. A sociedade já estava fadada ao fracasso, passado do ponto em que ainda havia retorno.
Era o fim. A maioria já havia se distraído e entrado para as massas… as minorias já não conseguiriam lutar. Fazer a sua parte era o plano, mas quando ninguém faz as outras, nada consegue dar certo. Nós não vamos nos unir. Somos acomodados. O mundo não tem salvação. Somos todos estatísticas e tudo que podemos fazer individualmente, na verdade, é muito pouco. Entramos para massas estúpidas ou viramos minorias indefesas. Enquanto todos os funcionários da empresa X ganhavam alguns centavos a mais, Ricardo perde todas as suas esperanças no planeta Terra.
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