sexta-feira, 24 de junho de 2011

Anarquia é Pouco


Eu não gosto de anarquia simplesmente pelo fato de já estarmos vivendo uma. Na verdade, é impossível deixar de viver numa anarquia. Ou isso, ou a anarquia em si é que é impossível. De qualquer forma, a moral da história é essa: em termos de anarquismo, dentro ou fora dele, estaremos eternamente no mesmo lugar. 

A voz popular definiria a anarquia como desordem ou algo assim. Pensando politicamente, seria algo como a falta de um Estado ou a constituição de um governo. Em termos semânticos, anarquia quer dizer apenas a falta de um líder. Essencialmente, a semântica vence. A anarquia é, no final das contas, a ausência de autoridade. O que resulta na falta de organização de uma hierarquia de poderes e impossibilita a formação de um Estado. O que, enfim, provoca a concepção popular de que a anarquia é sinônimo de caos. E o caos, afinal, tal como a anarquia, não muda: ou é constantemente inevitável, ou eternamente inalcançável.


Pode-se pensar assim: o mundo em que vivemos agora é caótico. É impossível não ser, porque a natureza do universo, por si só, é caótica. Qualquer tentativa de se implementar leis e regras nos fenômenos físico-químicos universais é fútil e ingênua, e por fim termina com uma série de emendas e casos especiais que nunca vão parar de surgir e se complementar. No fundo, a desordem vai sempre existir. E se você não reparou, eu acabo de definir a Constituição de qualquer governo.

O caos, então, social ou mesmo científico, é um fato por trás de uma ilusão superficial de ordem. Mas pode ter quem ache justamente o oposto. E com razão. Assim como fazem com a natureza, podem argumentar que existe alguma lógica extremamente regular e complexa por trás de todo o suposto caos e aleatoriedade que achamos encontrar nas coisas. Sendo assim, no fundo, o caos não seria um fato e sim uma perfeita impossibilidade: no final das contas, alguma lógica misteriosa vai ser revelada por trás de tudo. E da mesma forma que são renovados estudos científicos, Constituições e formas de governo serão elaboradas quase que automaticamente, por consequência natural de uma série de novos fatores explicitados. Então, considerando-se que a ordem surge do caos, percebe-se que o caos é justamente a base por trás de uma organização muito lógica que ainda não foi revelada mas que certamente existe.

Seguindo ambos os raciocínios, confirmando o que foi dito anteriormente, restam as tais duas opções opostas quanto ao caos: simplesmente existe, ou não existe. E, dentre esses dois opostos, uma interseção: existindo ou não, a imutabilidade estará presente. É sim ou não. Mas pra sempre.

Pois bem. Nesse contexto, volto a questão do meu desinteresse pela a anarquia. Tal como caos, a anarquia, invariavelmente, existe ou não existe. Isso porque a ordem surgirá por trás do caos, ou porque a ordem será irrelevante ao tentar ser imposta sobre o caos. Pode-se notar, por exemplo, que do caos e da desordem costumam surgir Hitlers e Napoleões que propõem o extremo oposto da bagunça vigente. Essa súbita necessidade irresistível de organização político-social não é nenhuma verdadeira novidade: é uma extensão da baderna, uma consequência natural da desorganização. Essa extrema ordem, no final, é fruto tão íntimo do caos que acaba podendo ser considerada ele próprio. Anarquia, então, é tirania. A ausência de autoridade seria apenas uma breve etapa da ditadura que naturalmente estaria por vir.

Eu sei, é triste assumir a inevitabilidade de liderança e autoritarismo. Podem até dizer que a sede de poder é algo mais cultural do que diretamente biológico e que, portanto, pode ser evitada com uma simples mudança de postura ideológica. Tudo bem, verdade. Nem todas as pessoas são intrinsicamente megalomaníacas e ambiciosas. Entretanto, a anarquia é base pra tirania a partir do momento em que, em meio a 6 bilhões de pessoas, ALGUÉM vai ter sérios problemas de autoestima. ALGUÉM, num oceano de seres humanos, vai acabar desenvolvendo uma necessidade incontrolável de poder e dominação. E em meio a uma sociedade tão feliz e pacata, um indivíduo assim reinará facilmente. E então, diante do desinteresse generalizado por autoridade, um único tirano reinaria sobre 6 bilhões de pessoas num piscar de olhos. Eu sei, isso é um exagero inimaginável apesar de já ter acontecido. Mas é inimaginável porque isso tá otimista até demais. A verdade é que não é apenas UMA pessoa que costuma aparecer com distúrbios de autoestima. Até porque, mesmo se fosse, essa única seria o suficiente pra criar o sentimento de: espera aí, existe poder? Então eu também quero fazer parte dele antes que seja tarde demais. E é aqui que toda a anarquia começa, realmente, a dar as caras.

Pessoas fofas estão aí. Isso é verdade. E mesmo que atualmente estejam todos constantemente pressionados a desenvolver um egoísmo competitivo doentio, eu ainda acredito que as tais pessoas fofas são a maioria nesse planeta. Mesmo assim, como sugeri, pessoas fofas são facilmente dominadas por indivíduos que não são nada fofos. Mantendo a linguagem popular, cito o ditado: bonzinho só se fode. Isso acontece porque, pra ser exercer qualquer bondade efetiva, é necessário uma tonelada de bonzinhos. Pra arruinar toda tentativa de paz e harmonia, basta um único imbecil. Pense em uma sala com 20 pessoas. Pra conseguir silêncio, todos precisam ficar quietos. Pra conseguir barulho, basta um filho da puta aos berros. 

Sempre vai ter alguém pra berrar. E sempre mais de um. E sempre coisas diferentes. Gente correndo e gritando que nem loucos já é cena normal na sala da anarquia. Curiosamente, nessa analogia, os verdadeiros anarquistas é que são os silenciosos vivendo suas vidas harmoniosamente em nossa salinha hipotética. Os outros, baderneiros, os tais únicos que bastam pra arruinar todo o silêncio na sala, não são nada anarquistas. Porém, são consequência natural do anarquismo, de um ambiente onde fazer barulho é tão fácil. São uma extensão daquela versão utópica do mundo sem regras em que se vive sem que ninguém se imponha sobre ninguém. Onde se impor, então, é ridiculamente fácil. E é assim que essa momentânea utopia anarquista se mostra ser uma mera fase do processo anárquco total, pois ela finalmente culminará em uma série de tiranos com alternativas muito mais distópicas do que utópicas pra (des)organização da sociedade. 

Dizem, por exemplo, que a democracia é a liberdade de escolher os próprios ditadores. E não há nada mais anárquico do que um ditador. Veja: mesmo na ciência da impossibilidade da anarquia utópica, a tentativa de algo que agrade a maior parte de uma população sensata simplesmente dá errado. Dá errado, porque a anarquia verdadeira (ou a impossibilidade dela, a depender do ponto de vista) é eterna no sentido de que, o tempo todo, sempre bastará um pequeno número de filhos da puta pra uma sociedade inteira ruir. Resumindo, independente do sistema que se escolha, haverá a constante presença da desordem (ou ordem), em que minorias gritantes serão capazes de reinar, possibilitando sempre a tirania. Independente de onde se esteja na linha horizontal imaginária do spectrum político, simplificada na velha bipolarização Capitalismo x Comunismo, tudo se iguala no momento em que a sociedade acabar explorada e dominada por uma elite. Seja uma elite de corporações magnatas, seja uma elite de governantes com poder excessivo. 

No final, o princípio da anarquia continua eternamente presente. Chamando-se de caos ou não, o fato imutável em questão é aquilo que sempre veio acontecendo ao longo de toda a história política e social da humanidade: bonzinho, só se fode. Mas esse triste fenômeno assustadoramente lógico, de forma alguma, pode ser considerado motivo pra se tentar viver na maldade. Não adianta tentar escapar. Esse é o grande engano. 

Como já se sabe na sábia sabedoria popular, mesmo que se baseando em uma série de superstições simplistas, os maus também se fodem. E quando se fodem, no final da contas, se fodem em dobro. Queimam no fogo do inferno. Ou então, numa questão representada como "karma", esse inferno pode ser uma metáfora aqui mesmo no nosso planeta Terra. Sendo assim, mesmo se descartando crenças religiosas, fica evidente que uma vida maléfica de frieza e ganância arrasta, sem necessidade de influências místicas, indivíduos pra um mundo terrível e conturbado em que o sucesso econômico e o poder viram um vício doloroso e insaciável. Finalmente, morre-se como um incontrolável viciado em cocaína, cheirando e cheirando sem sentir mais nada até que tudo entre em colapso e a vida não tenha um final nada feliz. Isso, sim, é ser fodido em dobro ao tentar se dar bem a todo custo. E ainda assim, as pessoas tentam ser bilionárias. E cheiram cocaína.

A questão é que, realmente, todas as pessoas acabam se fodendo de um jeito ou de outro. Tudo o que resta é apenas reconhecer esse fato pra suavizar a situação ao máximo. No final, o que nos resta é reconhecer o caos inescapável (ou inatingível) e ser a parte dos anarquistas que não berram que nem uns loucos numa salinha alegórica. É essa a parte boa, apesar de utópica, do pensamento anarquista: se recusar a participar de todo tipo de barulheira. Mas, pra que fazer barulho não seja tão fácil em uma sala insuportavelmente silenciosa, o que se deve fazer é cantar. E cantar, na verdade, é apenas um jeito bonito de dizer que não se deve permitir que vozes estúpidas se ergam com tanta facilidade com discursos facilmente corruptíveis. Mas o termo ideal aqui, na realidade, não é "cantar". É "conversar". E isso só é possível no momento em que ninguém mais quiser se foder e aprender que, pra isso, não adianta ser malvado ou bonzinho. Não adianta berrar ou ficar calado. Não adianta nada. Adianta apenas uma compreensão mútua e aberta de situações inevitáveis, mas sem o conformismo passivo que se permite ser fodido com tanta facilidade. 

Afinal, o que adianta é defender não só a si mesmo, mas também defender aos outros sabendo que assim também será defendido. É defender pessoas, e não ideologias. E dessa forma, trabalharemos juntos pra resolver todo e qualquer problema que surgir em mãos, independente do nome que se dê pras suas origens. E quanto ao nome dessas origens, refiro-me a uma lista enorme e ridícula de sistemas e partidos políticos que consistem essencialmente na mesma barulheira que temos no mundo inteiro. Na mesma anarquia distópica que vivemos atualmente. A anarquia da própria natureza em que sempre parece prevalecer a boa e velha "lei do mais forte". E é por isso, afinal, que eu não consigo gostar do anarquismo. Não gosto nem de silêncio e muito menos da barulheira que o mesmo paradoxalmente acaba facilitando.

O que eu gosto, afinal, é de não ver ninguém tapando os ouvidos e gritando na cara de ninguém diante de um mar de pessoas mudas. O que eu gosto, simplesmente, é de conversa. É de um apoliticismo num nível que recusa praticamente toda e qualquer forma de posicionamento político. Inclusive a atual e impossível anarquia.

E aí, finalmente, tenta fazer alguma coisa de útil.

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