terça-feira, 13 de maio de 2008

1- O Prólogo


Click. 

Fogo. 

O cigarro acende. Um detetive molhado e de barba mal feita acaba de acender um cigarro. Esse idiota sou eu. Guardo o isqueiro e fico ali, olhando a chuva cair com força do lado de fora. Era uma lanchonete, um café, um bar ou sei lá. Talvez um fast-food que queria ser um café. Não importa. Era alguma coisa que funcionava de madrugada e ficava na beira da estrada. Vendia cigarros e capuccinos, então servia.

Fiquei olhando a estrada escura e molhada pela janela, sentado sozinho numa mesa pra quatro. O lugar não tava cheio, não fazia diferença. Soprei a fumaça do cigarro e botei os cabelos molhados pra trás. Só de sair do carro e andar até aquele lugarzinho morno e silencioso, fiquei ensopado. Na mesa, pingava água do meu rosto.

- Seu capuccino, senhor.

Eu bebi e fingi que tava bom. Não devia esperar grande coisa, na verdade. Era uma espelunca 24h, largada no fim do mundo e repleta daquelas fotos desbotadas e falsas de deliciosos hambúrgueres e batatas fritas. A propaganda enganosa já não conseguia enganar. Pelo visto, nem isso devia ser bom por ali… quem diria o meu refinado capuccino.

- Obrigado - digo, de qualquer jeito.

Continuo sentado, olhando a escuridão do lado de fora como se o serial killer que eu persegui por esses longos anos fosse aparecer e se render. 

"Ei, Turner... já chega. Me leva pra prisão?" 

Obviamente, isso não aconteceu. Fiquei apenas aquecendo minhas mãos na chícara, com o cigarro úmido no canto da boca. Poderia até ter sido um momento relaxante se um bêbado não tivesse resolvido iniciar um monólogo no balcão ao lado. O assunto que ele arranjou não era dos mais convenientes.

- Sabe essa merda de Psycho Billy? - dizia ele, com seu sotaque estranho. - É tudo invenção da mídia, Joe. Coisa do governo.

Tentei ignorar. Continuei olhando a chuva lá fora e ele continuou resmungando com esse tal de Joe, um típico balconista gordo.

- Eles inventaram um serial killer pra botar medo nas pessoas. É a indústria do medo - ele resmunga. - Todo mundo preocupado, agitado, comprando alarmes, fechaduras, câmeras de segurança, sensores de movimento. Porra, todas essas merdas que ninguém precisa… até com tinta de cabelo já lucraram com essa porra de "Psycho Billy".

- Vai se foder, Karl! - Joe achava graça. - Tinta pra cabelo?!

De fato, a preferência do assassino favorito da América agitava a indústria de tintas pra cabelo. 

"Quer segurança? Compre SEGURANÇA LOIRA!" 

Isso é o slogan de uma marca vagabunda de tinta pra cabelo. O Billy sempre dava preferências às de cabelo preto. Mas isso é só um exemplo irrelevante. Quem mais lucrava, obviamente, era a mídia. Quando passamos a conversar com o assassino através de jornais e revistas, esse pedaço de papel vendia pelo país inteiro que nem refrigerante em lanchonete. E os acessos na internet, claro, explodiam. Era irresistível. Publicávamos as perguntas e aguardávamos ansiosamente, acredite, o próximo ataque do psicopata. E aí, junto ao cadáver seguinte, estaria uma resposta. Ou ao menos o que queríamos que fosse uma.

- Esse serial killer é uma celebridade - continuava o bêbado. - Assim como qualquer uma outra que vemos por aí com essas porras de papparazzi correndo atrás.

Bonecos, adesivos, camisas, canecas… ah, as máscaras. O que seria do último halloween se não fossem aquelas malditas máscaras espalhadas por todo o país?

- Porra, Karl, isso aí é um puta exagero.

- Puta exagero!? - gritou o tal Karl, cuspindo vodka no balcão. - Com uma ideia dessas, do que mais você precisa!? O governo arrumou uma ameaça e uma celebridade numa figura só. Eles divertem, distraem e apavoram as pessoas só com essa porra de serial killer… quer mais alguma coisa!? É só isso que eles querem, Joe… que as pessoas calem a boca, se preocupem e COMPREM. Querem que as pessoas parem de resmungar sobre o asfalto esburacado e o poste de luz que ainda não consertaram! Foda-se a corrupção no governo! Foda-se tudo! Larga um serial killer aí que todo mundo cala a boca e se preocupa com outra coisa. Claro, e compra merda pra caralho…

Ele bebe uns goles de vodka como se fosse água e diz, basicamente, a mesma coisa, dessa vez com mais calma.

- Esse Billy, cara - ele começa a explicar com as mãos. - Esse Billy é a alegria de todo mundo. A massa, o povo, mesmo o resto dos filhos da puta que não enriquecem com o cara... todos esses calam a boca pra ver o matador passar. Qual é o problema com os altos impostos, né? E daí que baixou a qualidade nos programas de TV? Fazer o quê se a educação pública só piora? Porra, temos que nos preocupar com outras coisas!!! - ele começa a rir, de repente, inconformado.

Apesar do estado do sujeito, eu não consigo discordar. As pessoas ficam totalmente paranóicas. Semana passada mesmo, por exemplo, uma garota atirou com uma espingarda em seu próprio namorado, estourando-lhe a cabeça, quando o sujeito subia pela lateral da casa. Ele só queria entrar silenciosamente pela janela do quarto da namorada. Evidentemente, o plano do garoto não deu certo. O estrondo dos tiros acordou os pais da moça. Pois é, tiros, no plural. Porque, por mais que lhe faltasse o rosto, o namorado foi reconhecido pela menina que, usando a mesma arma, disparou um tiro explosivo contra céu da própria boca. Mais duas balas de lucro pros fabricantes de munição. 

Ah, armas. Os lucros absurdos que estavam tendo. A venda de armas cresceu de maneira absurda, principalmente na região Oeste, onde as vendas subiram 315%. E isso legalmente. Aquela moça de 17 anos, por exemplo, comprou a espingarda de maneira ilegal, assim como descobrimos que seu namorado comprara, do mesmo traficante, uma enorme metralhadora M60. Fizeram isso com a autorização dos pais, inclusive, com o pretexto de defender a família do maníaco Psycho Billy. Agora, já não compramos mais sub-metralhadoras pra caçar antílopes e passarinhos. A desculpa é caçar serial killers. E logo canhões e fuzis antiaéreos estarão à venda no mercado mais próximo. Se é que já não estão…

Mas a questão aqui não é essa. O que eu quero dizer com tudo isso é que eu não acho que os infelizes familiares desse casal, ao irem ao velório dos filhos, reclamaram do preço da gasolina.

- Pera aí, Karl - dizia Joe, espero que sem realmente estar levando o papo a sério. - Pessoas morrem por isso, não é possível que o governo simplesmen--

- Fodam-se as pessoas! Isso não é novo! - Karl grita, interrompendo o gordo. - Atentados do próprio governo pra culpar algum inimigo qualquer? Já estive lá, fiz isso, comprei a camiseta e agora uso como pano de chão! - Karl dá um tapa no balcão. - Eles só querem dinheiro, dinheiro e dinheiro, cara! Dinheiro e gente burra e sufocada pra não reclamar enquanto eles enchem o cu de dinheiro! Deixa eu te dizer, Joe... o que custam esses pequenos sacrifícios? As poucas vidas de consumo sacrificadas fazem uma população inteira se apavorar e consumir muito mais: isso não é perda nenhuma, é LUCRO! - ele exclama, arregalando os olhos. 

Depois de um suspiro, ele continua, menos agitado: 

- Não falo só de armas e essas merdas de segurança, amigo… eles te bombardeiam com coisas pra "aproveitar a vida". A parada é ideológica, porra. Quem não quer aproveitar a vida com um assassino em série te espionando do outro lado da rua, tá entendendo? Pessoas felizes e realizadas acordam com um sorriso no rosto só de ver a porra do sol entrar pela janela. Mas acontece que sol é de graça, porra. Então deixa todo mundo fodido o suficiente pra TORRAR grana! COM-PRA-REM! 

Karl faz algum tipo de mímica pouco compreensível e continua: 

- E sabe qual é a melhor parte!? As pessoas se amarram, meu caro amigo Joe - aqui ele faz uma pausa estilosa pra molhar a garganta com mais de sua deliciosa vodka. - Elas gostam de problemas justamente por causa disso. Eu não sou nenhum psicanalista e o caralho, mas as pessoas precisam de problemas pra conseguir aproveitar a vida. As pessoas querem ser corrompidas. E aí se drogam e consomem putaria e compram um bando de babaquice e saem desfilando orgulhosamente pras câmeras de vigilância espalhadas pela cidade toda. Tá visualizando essa merda…? Esse psicopata é o fim do mundo. É o problema e a solução ao mesmo tempo num ciclo infinito. Esse filho da puta é multi-uso. 

Joe não parece entender grande coisa, mas Karl explica com seus braços magros.

- Pensa comigo: o MEDO é multi-uso. Ao mesmo tempo que é repressivo, é libertador. O inesperado te assusta ou te faz rir. Você quer se proteger, mas ao mesmo tempo quer curtir o pouco que te resta de vida. Tá sacando essa porra? O medo é a melhor das promoções em combo dessa merda de civilização em liquidação, colega. Parece meio contraditório, mas é assim mesmo que esse merda conquista o país inteiro. Esse é o espírito. Não é à toa que o Psycho Billy virou praticamente a porra de um herói nacional.

A porra de um herói nacional. Alguém que nos representa. Alguém com quem nos identificamos. Um reflexo. Um produto da nossa sociedade, definitivamente. Mas seria ele um produto, literalmente, do nosso governo…? Eu acho que isso já é até demais pro meu gosto. 

Bem… talvez eu só não acredite porque, pra mim, isso não é uma teoria de conspiração tão divertida. Eu, como inimigo de todos, tentando pegar "a porra de um herói nacional" inventado pelo próprio governo pro qual eu trabalho…? Quer dizer que tão me enganando? Quer dizer que EU sou o vilão dessa história?

É, não dá. Isso não é legal. Eu não acredito. Eu vi todos aqueles cadáveres de perto e sei que aquilo não é simplesmente o "emprego" de alguém. Todo esse horror não pode ser simplesmente armação do presidente ou das grandes corporações que o seguram na coleira. Não dá pra acreditar... faz sentido, perfeito sentido. Mas não dá. Aquilo não é um mero planinho secreto. Tem muita emoção ali. Tem muita… diversão... naquilo.

- Caralho - continuava Karl. - O mundo tá apodrecendo. Nem precisam mais ficar metendo comerciais na TV, reparou? É isso que o governo faz: usa a porra do jornal, da polícia, USA AS PESSOAS. A porra toda acontece naturalmente. Daqui a pouco seu melhor amigo vai tá com a casa cercada de arames farpados pra te fazer se sentir que nem um idiota. Ou melhor ainda: seu vizinho vai ser DESMEMBRADO por um suposto psicopata doente. Porra, tem propaganda melhor do que isso!? Os sistema só enriquece com essa merda toda, Joe. Cê tá entendendo? Eles querem enganar a gente com essa palhaçada… nos distraem com terroristazinhos e assassinos inventados pra se ocuparem com as coisas deles e lucrarem em cima da nossa estupidez. O que mais você acha que toda essa putaria quer dizer…? É só uma babaquice do acaso…?

- Bem, sei lá - murmura Joe, pensando em dar de ombros.

- Olha, Joe… a moral da história é que esse Psycho Billy não é simplesmente um ruivinho maluco. Um simples indivíduo não é capaz de foder uma nação inteira dessa forma. Porra, não dá. Não tem como o cara realmente existir. O desgraçado é uma ideia, cara… uma entidade. Ele é o diabo que trouxemos do inferno pra Terra. Sente só: enquanto 15 centavos são investidos em pesquisas médicas, bilhões são investidos na passagem do capeta pra nossa casa. Porra, Joe, tá dando pra entender? Verdadeiros problemas são ignorados por causa de um que sequer existe. Um que não era pra existir… mas a gente PAGA pra ele ser FABRICADO. Quando que é tudo invenção desses filhos da puta, não tô dizendo que é ficção. Esse merda é falso e artificial e inventado e blablablá… mas, no final… acaba existindo de um jeito ou de outro porque todos nós ACREDITAMOS que ele existe. 

Subitamente animado, Karl fala como se anunciasse num comercial de TV.

- E aí nasce ele: PSYCHO BILLY! Uma porra de invenção criada e financiada por nós mesmos e que ainda assim acreditamos! Um monte de merda simplesmente pra justificar uma porrada de babaquice e foder com a nossa grande "Liberdade Americana"!!! 

Rindo consigo mesmo, Karl bebe mais uns goles. De repente, como se lembrasse de mais alguma coisa, cospe mais vodka no balcão e acrescenta:

- E a gente? HA-HA! - ele levanta os braços. - A gente adora!!!

Ele bate palmas, com um sorriso debochado e os olhos novamente arregalados. 

- A gente adora e ainda PAGA pra ter mais!

Ele conclui com um tapa orgulhoso no balcão e aí, de repente, há um longo momento de silêncio. Karl finalmente termina sua garrafa de vodka enquanto Joe considera as informações secando um copo. O tempo começou a passar mais devagar quando o bêbado finalmente calou a boca. Não há nada pra ser acrescentado. Ele é louco, rude, ignorante. Não sabemos contestá-lo, mas imediatamente assumimos que ele está errado. É o medo de que essa merda seja verdade. É o medo do fato de que, mesmo no caso de tudo isso ser uma especulação conspiratória ridícula, tudo encaixa perfeitamente na cultura doente da sociedade em que vivemos. E aí, mesmo que a gente não acredite em nada, não conseguimos mais dizer pra nós mesmos que "não dá pra acreditar".

Apago o meu cigarro e volto a olhar a chuva do lado de fora. 

Esse Psycho Billy, afinal… onde foi que ele se meteu?

Então, escutamos um barulho de descarga vindo do banheiro dos fundos. Não tinha visto ninguém entrar ali. Ou, se tinha, já não me lembrava mais. O silêncio voltou por uns instantes e então começaram os barulhos da fechadura. 

Um estranho momento de tensão e a porta se abre vagarosamente. Todos olhamos curiosos. O sujeito fecha o zíper da calça. 

Ele usava aquela maldita máscara no rosto. 

Seus cabelos tinham cor de sangue.

Como em uma história de terror, antes de qualquer um de nós reagir, vemos um relâmpago e ouvimos um trovão. Com aquele sorriso frio e sarcástico esculpido na máscara, ele diz:

- E aí? Falando de mim?

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