Por favor, não mexa a sua perna direita. Você tem um problema com ela.
É compreensível. É claro que a sensação é estranha. É como se ela tivesse vibrando. Você sente a energia, o sangue passando, sei lá. Você quer mexer os seus dedos do pé. Você sente vontade de dobrar e esticar os joelhos. Sua perna inteira está formigando. Mas você se recusa a movê-la. Aliás, você não pode movê-la. Por favor, não mexa a sua perna direita.
É como se você tivesse em uma excursão no meio da mata, quando percebe que todos te olham estranho. Estão todos caminhando na floresta quando aquele guia negro com a camisa da cidade fala pra você parar um instante. Ele tira o boné com o logotipo do hotel e fala pra você ficar parado. Ele não quer te assustar, então ele só diz que tem um bicho na sua perna. Não uma aranha grande, peluda e venenosa. Você é comportado. Você dá uma olhadinha, até, mas não vê nada... e nem sente. O resto das pessoas, porém, não tira o olho do tal "bicho". O olhar das pessoas sobre a sua perna faz ela queimar. Ou talvez seja o veneno da aranha.
Você teve que amputar a sua perna direita depois daquele acidente de moto há 3 meses atrás. Mas ainda consegue senti-la. Talvez seja isso. Você sente, mas não tem nada lá. Você sente, mas não o suficiente. Não o que deveria estar sentindo.
É como se a sua perna estivesse em chamas, mas você não sentisse. Você não é masoquista, mas queria sentir. É preocupante. A natureza te deu o dom da dor e você não tá usando o negócio direito. Ela tá queimando e você não sabe. Pelo amor de Deus, sua perna direita é um desastre. É uma vergonha.
Todos eles olham e fazem careta quando o guia golpeia o animal da sua perna. Você não vê nenhum inseto ameaçador se desprender dela e cair no chão. Ou poderia ser um sapo, uma rã, sei lá. Vai ver era um sanguessuga. Você nunca vai saber. Vai ter que carregar esse fardo pelo resto da vida.
- Tirou? - você pergunta.
E o guia responde que sim.
Pelas próximas semanas, a sua perna direita estará infectada. Você não consegue mais relaxá-la. Ela está fria e quente ao mesmo tempo. Os pêlos da aranha continuam te pinicando. A rã fria e pegajosa tá grudada na sua perna com aquela pele úmida e venenosa. O sanguessegua continua escondido ali, tirando o seu sangue enquanto você não percebe. Estique e comprima os dedos do pé. Dobre e desdobre os joelhos. Que bom, você está setindo.
Pelos próximos meses, você vai ter que fazer isso. Ter certeza. As pessoas vão te olhar estranho. Elas vão perguntar se você tá bem. Você sabe que elas falam da sua perna. Sua maldita perna direita. Formigando. Queimando. Isso é algum tipo de brincadeira? Uma grande conspiração?
Tinha mesmo algum bicho nela? Bem ali, na perna direita… naquela parte. Tinha algo ali?
Se tivesse, tinha tanto quanto agora.
Você continua a caminhada na mata. Apesar dos mosquitos estarem almoçando nos seus braços, o que mais te incomoda é a perna. Você dá um tapa na sua própria cara e quando olha a palma da sua mão, não tem nenhum mosquito dela. Olha só pra você. Você é ridículo. Você e essa sua perninha direita.
Agora ela tá coçando, mas você não ousa chegar a sua mão perto dela. Você não quer sentir um animal peludo, pejajoso, fofo, seco e duro. Não ouse mover sua mão. Não estale seus dedos. Não abra e feche a mão três vezes. Você não é tão inseguro. Aliás, o problema é na sua perna e não na sua mão. Feche os olhos com força.
- Vamos parar para o descanso, pessoal - diz o guia. - Aproveitem pra tirar umas fotos. São só cinco minutos e nós continuamos.
Você para. Talvez no lugar errado, porque de trás dos arbustos, uma mão fria e magra agarra a sua perna e todas as pessoas do passeio gritam. É só uma mão dura e seca agarrada na sua perna. Apertando. Cravando as unhas em você. E daí? Por que elas ficam tão preocupadas!?
Pra que tudo isso!? Por que as pessoas não cuidam das próprias vidas!?
Então, mais uma mão surge e segura sua perna. Dessa vez, a esquerda. Não, a outra não. Você olha nos olhos assustados do guia e é como se aquele olhar preocupado decidisse o que lhe ia acontecer. Você aguarda. E acontece.
De repente, as duas mãos te puxam pra trás.
A física explica. Você tomba pra frente. Você vai cair de cara naquele chão de terra, cheio de raízes envelhecidas e folhas secas. Provavelmente, aquilo é algum tipo de fungo. Aquilo deve ser um animal morto. Aquela ali, cheia de formigas, é uma fruta estragada. Aquele negócio estranhamente podre é a comida digerida de algum animal doente. A escória da matéria orgânica desaba ali. Você vai fazer parte desse ambiente agora. Faria, se você não tivesse acordado e se enrolado todo nos lençóis da cama, como se tivesse tirando eles do seu caminho.
Suspiros de alívio.
Depois de perceber que isso não passou de um sonho, você instintivamente apalpa a sua perna direita. Ela ainda tá meio estranha. Sei lá. Será que tem algo de errado com ela? Será que ela foi sempre assim?
Agora, você vai ter que carregar esse fardo.
Um comentário:
MARAVILHOSO!
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