domingo, 10 de agosto de 2008

Gente de Estimação





Essas merdas acontecem e logo dizem que o pai era um alcoólatra agressivo que abandonou a mulher e o filho após espancá-los durante anos. O garoto cresceu sozinho, enquanto a mãe cheirava cocaína e trocava de namorado semanalmente. Traumatizado, o moleque surtou. Ficou violento porque era o único exemplo que tinha. Tratava as mulheres como lixo porque era como via sua mãe ser tratada. Como se não bastasse, cheirava cocaína porque isso lhe parecia perfeitamente normal. Tudo isso, pra ele, era certo. 

Mas seria o certo tão divertido assim?

O certo do Gustavo era fazer aula de francês, alemão, piano, violino, natação e hipismo. Quando ele era pirralho, essas coisas não significavam nada pra ele. Quando ele cresceu, menos ainda. Afinal, ele não ia se afogar se caísse na piscina. Também não se envolveria numa situação de vida ou morte que exigiria dele a incrível habilidade de conduzir cavalos treinados e saltar diversos obstáculos diante de juízes grisalhos. Gustavo certamente não seria pianista ou violinista. Aquilo não lhe servia pra nada. 

Por acaso saber francês e alemão faria dele alguém melhor do que os outros? Na verdade, ele alguma vez já ao menos QUIS ser melhor do que os outros?

Aqueles cachorros de corrida não querem ser melhores do que ninguém. Eles só querem pegar aquela porra de lebre disparada em alta velocidade. Eles não querem vencer. As apostas são feitas e são os seus donos que querem que eles vençam. 

Os cachorros? Oras, eles só querem correr.

Talvez Gustavo fosse assim mesmo. Um bichinho de estimação com a finalidade de agradar seus donos. Toda vez que os amigos de seus pais entravam em casa, era como se ele estivesse em uma exposição de animaizinhos treinados. O garoto tinha que correr e arrumar a casa inteira pra família parecer mais organizada. E quando aqueles coroas desconhecidos se casavam, Gustavo aparecia no casamento como um gatinho de raça: impecável, perfeito, aguardando ser minuciosamente avaliado por seres completamente desconhecidos enquanto ele próprio mal sabia o que lhe estava acontecendo. 

A vantagem é que pra um gato ninguém precisa inventar a desculpa de que ele não pode ficar em casa sozinho (como se ele fosse resolver beber detergente se ficasse longe dos pais) ou de que aquilo era um "compromisso social" inevitável. Não precisa: dê uma lata de atum ao bichano e ele logo se satisfaz com sua vidinha submissa. Nada contra gatos. Mas é uma pena humanos não serem assim tão simples.

Não havia atum o suficiente. Não tinham mais lebres pra correr atrás.

Chegou um dia em que Gustavo não estava mais satisfeito com nada daquilo.

Chegou um dia em que descobriram um tumor do tamanho de uma bolinha de gude no meio do cérebro de sua mãe.

Foi mais ou menos na mesma época. Sua mãe ainda estava viva, mas Gustavo já morava sozinho com seu pai enquanto aquela mulher magrela e careca morava em uma cama de hospital com tubinhos metidos no nariz.

- Não pare o francês agora, Gustavo - dizia seu pai. - Sua mãe vai ficar tão feliz se você passar no DELF...

E ele continuava. Pela sua mãe morrendo em uma cama de hospital, ele tinha que sofrer aquelas tediosas aulas de francês. Gustavo não queria morar na França ou muito menos acabar virando um professor arrogante e mesquinho de francês. Em que outras situações ele precisaria saber daquela linguinha inútil? Até pouco tempo, Gustavo queria mesmo ser catador de lixo. É sério. Em seus 10 anos, o menino prodígio ficava fascinado ao ver aqueles sujeitos corajosos pendurados de madrugada atrás de um caminhão, correndo pra lá e pra cá e jogando sacos de lixo ali dentro. Aquilo era uma aventura. Os caras mexiam onde ninguém queria mexer. Aquilo sim era um emprego digno, não ensinar uma linguinha inútil a uma centena de filhinhos de estimação que nem ele.

- Pelo amor de Deus, filho - dizia seu pai. - Veja a situação da sua mãe! O que custam algumas aulinhas? Vai doer tanto?

Gustavo sentia como se continuasse a comer depois de ficar satisfeito, só pra não jogar a comida fora. Ele de fato se lembrava dessa situação. Sempre acontecia quando ele tinha uns cinco. Era clássico: ficar na mesa até raspar o prato. No lixo ou em um estômago satisfeito, de que serviria aquela comida? Depois o pai ainda teria que metê-lo em uma academia porque comeu mais do que precisava e engordou. Realmente, era melhor que a comida fosse pro lixo.

Ainda assim, com o garfo na mão, sua mãe insistia:

- Abre a boca, Gustavo! Com tanta gente passando fome no mundo, você vai botar essa comida no lixo?

Gustavo nunca entendeu essa pergunta, julgando que antes de ser levado por incríveis lixeiros, aqueles sacos pretos e fedidos seriam arrebentados por gente faminta que comeria justamente o que ele não quis.  

- Sim - respondia o garoto. - Não é no lixo que essa gente arruma comida?

Sua mãe usava o melhor argumento de todos:

- Come logo que eu sou sua mãe e tô mandando!

Toda aquela merda não fazia o menor sentido. Gustavo não podia fazer perguntas, tinha que obedecer cegamente às ordens mais estúpidas que recebesse. No fundo, sua mãe era uma ditadora. Agora, a mulher vive numa cama de hospital, totalmente dependente e sempre conectada a máquinas. Sempre com algum enfermeiro por perto. Ela ia morrer inevitavelmente dentro de dois anos, na verdade, mas talvez fosse justamente por isso que tomavam tanto cuidado pra mantê-la viva. Era como se quisessem vê-la sofrer até o último suspiro. Parece estranho, mas isso é comum. Tem gente que fica tetraplégica, cega e surda e todos trabalham duro pra preservar a beleza da vida. É normal. No fundo, as pessoas fazem isso pensando apenas nelas mesmas. E Gustavo, não entendendo a necessidade de prolongar todo aquele sofrimento, obviamente não tinha o direito de perguntar.

- Por que vocês simplesmente não... desligam ela?

- Gustavo!!! - grita seu pai. - Você não tem amor pela sua mãe!?

Pronto. Gustavo agora ficaria de castigo por supostamente não amar sua mãe. Estava de castigo por não querer ver aquela mulher apodrecer de fralda numa cama de hospital. No fundo, é tudo uma questão de imagem: como um bom filho de estimação, numa belíssima e contraditória demonstração de amor, ele deveria fazer de tudo para manter sua mãe viva até o último segundo. Vê-la sofrer até o útimo suspiro. Ou isso, ou estava de castigo.

É assim que se treina animais.

O pai de Gustavo sabia disso e era capaz de aumentar sua mesada se ouvisse um "eu te amo, papai", diariamente. Ele era doente. Ele não tinha um tumor no cérebro mas era mais doente do que sua mãe. Ele achava que era assim que se conseguia o respeito de alguém. Se não dessem "bom dia", "boa tarde" e "boa noite" a ele, a solução era simples: castigo. Era uma ditadura. Um amor abertamente forçado, em troca de internet e TV a cabo. 

As pessoas sempre engolem o totalitarismo por algum tempo. É como sofrer um estupro diário. O maníaco quer sexo e você não… mas é ele que tá com uma faca na sua garganta. Vai, deixa ele te foder porque senão ele te mata. 

Pois é. Pelas primeiras vezes, parece sempre que ser fodido é melhor do que morrer. Mas as primeiras vezes já aconteceram faz tempo. Bastava. Gustavo sequer conseguia fingir gostar um pouco que fosse de seu pai. Ele sequer o respeitava. As pessoas sempre acham que filhos devem um amor cego e irracional aos seus pais, mas elas pensam assim justamente porque foram ensinadas pelos pais . Esses filhos sofrem lavagem cerebral e no final acham que as aulas de piano são "pro bem" deles. Mentira. Você não deve nada ao seu pai, você é só o gozo dele um pouco mais desenvolvido. 

Mas ainda assim, costumam dizer:

- Ele briga comigo, mas eu o amo. Afinal, ele é meu pai. Nossa, quem seria capaz de odiar o próprio pai?!

Bem, Gustavo é ótimo um exemplo.

E agora estava sem internet, videogame e TV a cabo. Só saía de casa pra ir à escola ou aos seus cursinhos estúpidos. Aquilo era suficiente. Ele não queria mais ser violado e estuprado. Foda-se. Chega um ponto em que é melhor estar morto. E se isso não era estar morto, quem é que ia chamar essa merda de vida? O menino chegara num ponto em que não havia mais nada a perder. 

Então, veio o fatídico dia de que todos ouvimos falar. Gustavo foi ao hospital dar a terrível notícia à sua mãe. Ela parecia nem se importar de estar viva ali, apodrecendo naquela cama. Ela vivia pros outros assim como Gustavo, pelo suposto conforto da família ao ter aquela pessoa ali, viva, mesmo que artificialmente. Ela vivia como fazia o seu filho viver. Mas, ainda assim, não se dava a menor conta disso. 

- Olhe isso, filho - ela dizia, encarando a TV.

Em um programa imbecil de auditório, um menininho japonês com menos de 10 anos tocava piano maravilhosamente bem e em alta velocidade.

- Talvez na outra encarnação - ela disse, com uma voz rouca e fraca. - Talvez na outra encarnação eu tenha um filho que toque assim.

A mulher ainda sorria: pra ela, aquilo tinha graça. Gustavo não pensou que uma mãe, pra falar uma merda tão grande ao próprio filho, devia estar sob efeito de fortíssimos medicamentos ou mesmo do próprio tumor cerebral. Mas mesmo desconsiderando essa hipótese, Gustavo não ficou triste nem desapontado. Foda-se se ele não cumpriu o que esperavam dele. Gustavo não se importava, apenas riu do absurdo que era a sua vida. Ou talvez, justamente, de sua falta de vida.

- Talvez na próxima encarnação - repete o menino.

Gustavo apertou a bolsa de soro de sua mãe enquanto, com a outra mão, metia uma toalhinha suja de sangue e catarro na boca da mulher. Ela não conseguia respirar. Sua cabeça doía. A pressão nas suas veias era imensa. E se ela conseguisse gritar, não ouviriam. Tudo que se ouvia era um lindíssimo solo de piano em alta velocidade.

Quando todos aplaudiram a música, os batimentos dela pararam e o apito da máquina se confundiu com o toque de celular do Gustavo. Era seu pai. Correndo pelos corredores do hospital, ele gritava no aparelho ao seu filho:

- Quando éramos mais novos, tínhamos metade do que você tem hoje, Gustavo! Aliás, menos do que isso! Queríamos nadar, tocar instrumentos, aprender línguas, mas nossos pais nunca tiveram dinheiro pra isso! Agora a gente estudou e conseguiu dar todas essas oportunidades aos nossos filhos e é ASSIM que você nos trata!? Você é um ingrato, Gustavo!!!

Ele já havia escutado esse discursinho imbecil antes. As pessoas não têm que aproveitar absolutamente todas as suas oportunidades só porque as têm. Não é preciso entupir o estômago de comida só porque ela sobrou está ali, diante de você. 

Os filhos não são iguais aos pais. Não somos bichinhos de estimação. Não estamos aqui pra agradar ninguém.  

- Desiste, pai - ele respondeu. - É tarde demais.

- O quê!? Você disse que ia sair do cursinho!? Eu te PROÍBO de sair!!!

Gustavo desligou o celular e tirou o pano imundo da boca imóvel e gelada de sua mãe. Seu pai, correndo pelo hospital, chegou rapidamente ao quarto onde sua mulher estava morta. Porém, não teve tempo de perceber isso, pois ao som de um estalo seco e eletrizante, teve seu rosto queimado e lançado pra trás.

ZAP!

Ele bateu com a cabeça na parede e ficou berrando algo incompreensível com as mãos no rosto. Gritava e cambaleava como um bêbado, derrubando todos os remédios do quarto enquanto procurava alguma coisa com os braços.

Gustavo olhava aquela cena com certo desprezo, mas logo abriu um sorriso aliviado no rosto.

- Até que aquelas aulas de primeiros-socorros me serviram pra alguma coisa… mas nunca imaginei que teria a oportunidade de usar um desfibrilador na cara de alguém.

Quando os enfermeiros chegaram, havia apenas uma magricela morta na cama e um sujeito gritando e rolando no chão, com as mão no rosto estranhamente ensanguentado, queimado e desfigurado. O filho dos dois já não estava mais lá.

O garoto, no auge de seus 13 anos, estava vagando pelo hospital e matando todos aqueles que dependiam de máquinas pra viver. Ele cresceu achando que nunca foi bom o suficiente, mas pra um menino matar 72 pessoas com as mãos vazias em menos de uma hora, ele tem que ser bom em alguma coisa.

Não se sabe se aquilo tinha algum significado mais profundo. Talvez ele tivesse se sentindo um nazista adiantando a seleção natural e eliminando os fracos. Talvez ele achasse que aquelas pessoas viviam apenas pra agradar seus parentes egoístas. Talvez, também, Gustavo só estivesse fazendo aquilo porque era errado. 

Não se sabe, mas essas merdas acontecem e logo culpam aquela típica família desajustada em que a filha de 15 anos está grávida do pai. As pessoas esquecem que essas merdas acontecem nas melhores famílias. Uma família feliz, com dinheiro, que deu todas as oportunidades possíveis aos filhos. Uma família sofredora, de bons costumes, em que a pobre mãe morria de câncer na cama de um hospital. Nossa, é tudo tão lindo e dramático... e por que o garoto matou 72 inocentes em apenas um dia, além de seus próprios pais…?

Bem, algumas pessoas não se contentam com uma mera latinha de atum.