domingo, 3 de novembro de 2013

Repensando a Anarquia

Há tempos estive flertando com a anarquia. Me sinto uma jovem recém-casada, se olhando no espelho, virando de perfil, imaginando a barriga protuberante e se perguntando se aquela imagem poderia corresponder a uma mulher grávida, uma nova mamãe. A situação me é parecida - o meu bebê, a anarquia. Me encaro no espelho e às vezes, no meio da rua, me pego perguntando: imagina só se eu, aqui, fosse um anarquista. Será que eu sou? Será que eu posso ser…?

Sempre considerei a anarquia como impossível e utópica, e portanto até mesmo perigosa. É aquele pessimismo básico: é claro que alguém, numa comunidade linda e pacífica e sem autoridades, iria resolver sem mais nem menos espancar a todos e tentar dominar o mundo. A vida é assim. E se você parar pra pensar, é basicamente isso que sempre aconteceu na história da humanidade (e mesmo em outras espécies vagamente sociais). Com relação a isso, inclusive, eu sequer mudei de ideia - ainda acho que sempre vai haver algum lunático pra estragar tudo. Mas a questão não me parece ser mais essa. A questão é que "ser anarquista", afinal, é muito mais do que fantasiar com esse mundo sem autoridades dando certo. 

Nessa outra concepção, a anarquia não seria um fim, distante e utópico, e sim um meio. Um meio infinito. 

Todo mundo conhece o conceito de que "utopias servem para que não deixemos de caminhar". Mas também, a anarquia não é isso. Muito pelo contrário: a anarquia serve justamente pra parar de caminhar e dar meia-volta - porque pera aí, tá dando tudo errado e vai dar merda.



Essa é a grande sacada. A grande sacada é que a anarquia não se ilude com estrutura política alguma.

Veja só: todo sistema político/econômico é utópico e falho, e sempre haverá algum para o qual estaremos caminhando. Pior do que isso, não só estaremos caminhando como já haverá algum sistema porcamente estabelecido, com um ideal utópico e supostamente fofo planejado para o futuro. Por exemplo, o mundo moderno/ocidental/globalizado vive atualmente num estado fajuto de democracia capitalista, em que supostamente todos têm direitos e conquistam o que podem com o suor de seus trabalhos. Só que eu sinto muito, porque nem é isso que está acontecendo. E provavelmente, também não aconteceria no comunismo/socialismo. É até meio surpreendente: se você olhar a coisa como um todo, esses ideais políticos são muitíssimo parecidos em seus objetivos mais abrangentes. No final, a coisa toda se resume a isso: todo mundo trabalhando feliz em um mundo justo, onde todos se respeitam e vivem na prosperidade que é o fruto de seus esforços. Pensando bem, até mesmo a anarquia seria desse jeito. E até aí tá tudo certo. E se dependesse apenas disso, eu até concordaria com as ideias bonitas de todo mundo.

Mas de boas intenções, o inferno tá cheio.

O grande problema, afinal, é isso: sempre vai haver aquele momento em que tudo começa a cair aos pedaços, mas que ainda assim haverá um terrível conformismo fanático pelo lado quem tá vencendo. Aquele momento de vilão de desenho animado, esbravejando em ruínas:  "não, espera! o meu sistema dá certo! vocês não entendem! eu tava quase conseguindo!!!". E quando se chega nesse momento de desespero, a vida real não é tão fofa quanto nesses desenhos reais e hipotéticos. Porque geralmente, é aí que começam as medidas mais absurdas e os apelos mais violentos pra manutenção da ordem. É aí que crescem os gritos de sacrifícios por um "bem maior". E então, erguem-se os apelos de um regime totalitário como medida desesperada pra manter um sistema falho - de esquerda, de direita, de cima ou de baixo.

Mas veja só: a anarquia é imune a isso. 

É claro que, até certo ponto, a anarquia não é a completa fuga política (antes que tentem apontar essa suposta hipocrisia boba). A anarquia, também, tem a sua utopia idealizada ao horizonte. E se surtar e entrar em desespero, ela poder muito bem se defender com garras e dentes em um nível violento e perigoso, com assassinatos e sequestros e coqueteis molotov. Anarquistas também podem radicalizar, e não estou querendo dizer que todos os anarquistas são intrinsicamente bonzinhos. O que eu quero dizer é que, no final das contas, a utopia anarquista é justamente o OPOSTO do maior e mais violento inimigo opressor, seja ele Estatal ou Corporatocrático - o monstro do totalitarismo.

Porque enquanto alguns conformados e alienados vão sempre concordar com o poder supremo do time que está ganhando, a anarquia está fadada a querer, PRA SEMPRE, derrubá-lo do poder.

Eis a magia que ecoa nesse texto: a anarquia vai sempre estar no time que está perdendo. A anarquia vai sempre estar eternamente insatisfeita com a ordem vigente. Porque sempre haverá uma. E a ordem da anarquia não existe. Então se alguém discorda de alguma força, instituição, poder ou autoridade - a anarquia estará ao seu lado. 


Na concepção popular, infelizmente a anarquia é relacionada a um comportamento "do contra", punk, radical ou imaturo… mas o fato é que não há nada de ridículo e imaturo nisso. Esqueça o imaginário do estereótipo anarquista. Sim, trata-se de nunca concordar com nada. Mas essencialmente, esse é o princípio mais lindo - a grande beleza da anarquia é, afinal, estar eternamente do lado de quem não concorda, do oprimido e discriminado, seja quem ele for.

Comunistas e capitalistas, pretos e brancos, ateus ou religiosos. Se você se deu mal e não está de acordo com o time que subiu no palco, não se assuste. Os anarquistas vão sempre estar vaiando ao seu lado. Porque enquanto você estiver vaiando, eles defendem os seus direitos. Mas tente concordar com o status quo e com o time que tá mandando, e o anarquista será o seu mais novo inimigo ideológico. Eles não vaiam porque estão de acordo com você: eles vaiam porque vivem num estado de oposição eterno.

Pensando dessa forma, milhares de pessoas politicamente indefinidas (ou mesmo desiludidas), mas ainda assim ativistas e preocupadas, poderiam muito bem ser consideradas como anarquistas. 

Não é preciso ser punk ou revolucionário, não é preciso viver no mato como hippies ou atirar molotovs. É importante que se reformule essa imagem de que o anarquista deve ser um idealista isolado ou radical inconformado. Um anarquista, além de tudo isso, pode ser muito bem um velhinho simpático com seu suéter, em plena fila de um supermercado em meio a uma população normal. Inclusive, estou imaginando exatamente a figura do Noam Chomsky, linguista, filósofo, ativista e professor universitário em seus 84 anos, que jamais imaginaria com um moicano ou vivendo numa tenda na floresta. E muito menos o julgaria como uma figura menos importante por viver como um urbano, ocidental e relativamente normal.

Em outras palavras: um anarquista não é automaticamente hipócrita e inútil simplesmente por estar vivo numa sociedade terrível que nos coloca numa situação de dependência praticamente inevitável. Ok, é claro: pode parecer esquisito o tal clichê decorado do comunista que bebe Coca-Cola e usa Nike falando no iPhone, comprando e utilizando produtos e serviços que só existem e funcionam atualmente por causa de um sistema de livre-mercado, às vezes cruel e assassino. Mas a anarquia, afinal, não tem nenhuma obrigação instintiva e impulsória de ter como estratégia destruir tudo o que vê pela frente. Inclusive, um anarquista pode muito bem decidir apoiar esse ou aquele político, enquanto outros perferem votar nulo ou se ausentarem por completo desse jogo sujo com o qual não concordam. 

Cada um é que sabe - a estratégia anarquista varia e um sistema falho não precisa ignorado por isolamento ou destruído por violência em um golpe revolucionário. A única exigência é essa: ALGO, seja o que for, precisa ser feito.

Existe sempre um grande perigo controlador pairando sobre os sistemas sociais, políticos e econômicos da humanidade. E às vezes, faz muito mais sentido desconstruí-los com gestos delicados do que com golpes e atentados. Afinal, o funcionamento da sociedade ainda é incompreensível pro entendimento humano. E dessa forma, vamos fazer o quê? Podemos espernear, gritar, quebrar tudo, fugir… ou simplesmente tentar ir aparando as pontas.

Penso assim com relação a tudo: religião, comunismo, capitalismo, e recentemente percebi que sou assim também com questões de gênero e feminismo. Eu não sei se há um problema INERENTE no cristianismo ou no islamismo. Eu não sei se a sociedade capitalista é IMPOSSÍVEL de ser justa, ou se o socialismo é INEVITAVELMENTE antidemocrático e corrupto. Também não acho que haja um problema INTRÍNSECO na sexualização da mulher: é objetificação do corpo feminino ou exercício de liberdade sexual? Tudo isso é muito misterioso e discutível, e não acho que nada ideológico que não pregue a violência possa ser POR SI SÓ negativo. 

Não acredito em sistemas e rótulos e valores do tipo, e portanto me recuso a demonizá-los por completo. Mas também, definitivamente, não acho que nada seja plenamente divino. Como eu disse no penúltimo parágrafo: talvez o único jeito de descobrir se as coisas funcionam seja tentar ir aparando as pontas. Um problema nisso, um problema naquilo. A intolerância da religião. O predatorismo do capitalismo. A corrupção dos valores sociais nos sistemas políticos ou sindicalistas. Mas assim, pouco a pouco, a gente tira os problemas e vê o que sobra. Será que numa sociedade igualitária em termos de gênero, os funks de putaria ainda iam existir…? Talvez acabem como um sinal de maturidade. Talvez continuem a todo vapor, porque não têm nada a ver com isso. 

Talvez num mundo agradável ainda dê pra comprar e vender. Talvez as pessoas ainda tenham suas religiões e ainda e rezem pra seus deuses. Como é que a gente vai saber...? Bem, não vai ser destruindo nada disso. Pode parecer inimaginável, mas a anarquia não precisa ser destruidora de ideologia alguma - essas são apenas abstrações que mal existem, e cujos conflitos exacerbados só acabam gerando problemas.

Eis a questão: não acho que nada precisa ser combatido radicalmente (no sentido pleno da palavra - pela raíz), e sim que TUDO precisa ser aparado, pela superfície, por ser absolutamente incapaz de ser perfeito. Nem mesmo a anarquia é tão perfeita assim: se um dia se estabelecer uma sociedade anarquista (se é que esse é um conceito possível), a humanidade será uma coisa tão linda e fofa e frágil e pacífica que me causará o terror de provavelmente estar a beira do completo domínio por qualquer meia-dúzia de armados. Junte mais alguns preocupados e logo estarão se unindo: "anarquistas, derrubemos a anarquia!". E o mais engraçado é que não vai ser um dever difícil.

Enfim, a graça é justamente o perpétuo movimento nas estruturas da sociedade. A grande sacada é aquela que venho dizendo: o anarquista se recusa a estar parado. Se recusa a concordar. Se recusa a se conformar. A grande magia da anarquia é essa - estar eternamente reclamando, discutindo, se aliando aos mais fracos agora e aos que estiverem fracos depois que os derrubarmos do poder que um dia já tiveram. A essas alturas, já estou imaginando a anarquia como um lindo grupo zen de resistência jedi, constantemente mantendo O Equilíbrio da Força e nunca deixando se estabelecer a situação lamentável de hierarquias autoritárias, opressores e oprimidos, ou qualquer organização política em que exista o menor número de insatisfeitos (porque sempre vai haver algum insatisfeito).

Enfim, a anarquia é a ideologia dos que não conseguem concordar com nada e estarão eternamente preocupados e inquietos. São a classe dos apolíticos mais politizados. E por essas e outras, eu me identifico.

Sei lá, me parece cada vez mais uma coisa linda…

Talvez eu esteja grávido.



Um comentário:

Handalo Felix disse...

Sinceramente, o texto tá muuuito bom, tbm venho me embrenhando pelos conceitos e filosifia anarquistas, e cada vez ficando mais apaixonado pelo tema. se quiser trocas algumas ideias sobre isso, adoraria conversar contigo, quero muito aprender mais.
handalo2505@hotmail.com