terça-feira, 29 de outubro de 2013

No Mangue

Há apenas o barulho calmo, molhado e escuro, da água quase parada indo e vindo sobre a terra podre. Há lama, raízes… as árvores estáticas na brisa morna da noite. Em algum lugar, uma cabeça. No matagal escuro e quente, uma cabeça estranha mergulha o rosto na água morna - os cabelos boiando, ensanguentados. 

Ouve-se os passos lentos e arrastados na água. A luz forte e pálida da lanterna, criando aquelas sombras tortuosas de troncos e galhos escuros. De repente, aquele corpo: 

- Tá aqui.

A pele acinzentada, as veias pálidas, a camisa fina e transparente. O cinto, a calça preta. Um pé de meia, o outro ainda com um sapato de couro. A cabeça bóia com o rosto pra baixo, os cabelos num emaranhado escuro de vermelho…

- É ele - confirma o outro. - Filhos da puta...

Um terceiro homem se aproxima, com ares de tédio e desgosto.

- Puta merda...


- Vamo levar pra caminhonete - se adianta. - Isso não pode ficar aqui.


- Que merda - resmunga o outro, de novo. - Passaram o Luiz.

- Vamo, rápido - apressa o do meio. - Levem essa porra pra caminhonete, que se essa merda cai no outro batalhão a gente tá fodido.

O corpo é erguido, pesado e inchado - a água morna lhe escorre como uma pequena cachoeira. Preguiçosa, escorre rosada do crânio semi-aberto. O homem pede ajuda pra erguer o corpo. Desajeitado, o outro ajuda, entregando a lanterna ao sujeito que dava as ordens:

- Vamo logo sair daqui.

De repente, um disparo seco.

O corpo cai de volta na água. Nenhum pássaro voa, nenhum bicho se assusta. As árvores continuam paradas, a água logo se acalma. Além do silêncio, a gritaria: 

- Que porra é essa!? - todo molhado, saca logo a pistola.

- Eles tão aqui, porra - saca também um revólver.

O outro tá segurando a cara ensanguentada - a bala lhe atravessara o rosto. Do nariz, escorre-lhe sangue como se virassem uma garrafa por dentro da cara. Outro disparo ecoa na mata. Um rápido flash amarelado e discreto em algum lugar do outro lado. O tiro, dessa vez, lhe atravessa as têmporas, cruzando o cérebro e arrebentando sua consciência instantaneamente. 

- Puta merda!

Mergulha morto no lamaçal. Os outros dois se abaixam, vendo o colega afundar com dois buracos na cara. Debaixo do rosto, a água borbulha avermelhada...

- Puta merda! - repete assustado, se abaixando na água.

- Não dá pra ver nada - resmunga um sujeito com um fuzil.

Uniformizado, o homem grisalho não responde. O atirador volta o olho na mira, em silêncio.

- Onde eles tão, porra…? - pergunta ao outro, também abaixado entre uns gravetos.

- Veio do outro lado - responde, mais calmo. - Eles não vão chegar mais perto. Vamo sair daqui logo, sem fazer barulho…

- Porra - sussurra novamente. - Passaram o Luiz, porra… passaram a porra do advogado…

- Cala boca, porra! - irrita-se. - Vamo logo sair daqui, ainda dá pra resolver essa merda toda…

Abandonam o cadáver. Agora, com companhia. Afastam-se com cuidado, e a água se agita preguiçosamente a cada passo. Nada mais acontece, e um pássaro escuro passa voando em algum lugar. "Mau agouro", é o que pensam os supersiticiosos. E de repente aquele discreto flash amarelado de novo. Um rasgo na escuridão:  a bala passa a alguns metros num zumbido ao mesmo tempo assustador e reconfortante. Atinge uma árvore, que balança com indiferença…

- Rápido, rápido! - os dois se apressam pra fora dali.

Do outro lado, o atirador lamenta:

- Não dá pra ver nada… não sei o que é gente ou o que é árvore…

O sujeito grisalho suspira, desistente.

- E o advogado? - pergunta.

- Tá lá na água, junto com o outro que eu acertei. Os outros eu não sei, se embrenharam na mata…

O homem se afasta, tratando de falar num rádio. Numa mistura de satisfação e culpa, o atirador trata de guardar o seu fuzil…

Metros e metros do outro lado, os dois homens saem da água assustados. As calças pesadas, empapadas de água… e lá está a caminhonete encostada, sozinha na escuridão.

- Toma a chave - diz o das ordens. - Você dirige.

O sujeito pega a chave assustado e os dois de desenterram da lama pra terra seca. Estão ambos correndo pro carro encostado na estrada alaranjada quando um sujeito de capacete se ergue. Em algum lugar, uma moto no escuro. Estava sozinho, com uma jaqueta preta, empunhando uma arma.

- Calmaí, calmaí, calmaí… - o sujeito assustado levanta as mãos.

Leva um súbito tiro na testa. A chave do carro escorrega de seus dedos e seu corpo ainda molhado cai logo em cima, pingando. O outro saca rápido o seu revólver. Há único tiro. Sua arma cai no chão e ele dá alguns passos pra trás, com o braço ferido. O homem de capacete se aproxima imbatível - o braço esticado, a arma na mão. Um assassino profissional. Robótico.

- Calma, calma - segura o braço sangrando, anda pra trás. - Ainda dá pra resolver a porra toda, todo mundo sai ganhando…

O homem de capacete encosta o cano da arma na cabeça do sujeito e puxa o gatilho num estouro que molha a arma e a terra de sangue. Com um pedaço do cérebro pendurado pra trás, o homem cai deitado no chão. Os olhos apertados, a cara franzida pelo disparo… agora relaxa com o rosto na terra seca. 

O sujeito do capacete pega o rádio:

- Foi todo mundo.

O atirador, do outro lado, se intromete:

- E agora? - pergunta ao grisalho.

- Agora eles se foderam - guarda o rádio e volta pro carro. 

- Vai ficar todo mundo pra gente? - pergunta. - Não tô entendendo… como é que fica os caras da outra jurisdição…?

- Foda-se a jurisdição. Quem conta a história é a gente.

O atirador não compreende mas parece que tudo havia dado certo. 

Primeiro, o céu fica azulado num tom claro. Desaparecem as estrelas. Torna-se rosado. Alaranjado. O sol está no alto e o céu está azul quando os últimos carros pretos se aproximam. A jornalista arruma os cabelos apressada, num pequeno espelho - seus sapatos bonitos sujos daquela terra seca.

- Tô pronta?


Há uma longa faixa amarela. A polícia cerca os corpos, mantendo longe a meia-dúzia de curiosos que se aproximam com suas bicicletas enferrujadas e farrapos (sabe-se lá que lugar era aquele). Do outro lado, plaquinhas com números no chão e fotógrafos barrigudos de luva branca. Jornalistas tentam se aproximar com suas câmeras de TV, as vans das emissoras estão estacionadas em volta. Enquanto isso, a jornalista se aproxima para conseguir uma entrevista ao vivo com o delegado, pro jornal da manhã.

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