quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O TIOPÊS NA LITERATURA

Claro que não. Muito dificilmente seria aceito na literatura tadicional que os personagens falassem em algo tal como o "tiopês". Não só os personagens, mas imagina só: o próprio narrador, ausente, onisciente, narrando em terceira pessoa. Jamais o narrador que narra em terceira pessoa poderia desenvolver tanta pesonalidade e presença (apesar de todos sempre acabarem tendo um jeitão meio próprio), pois no momento em que ele se excedesse ia acabar se parecendo demais com um ser humano, e os leitores poderiam começar a achar que ele existe de alguma forma no universo da história e tudo ficaria confuso. Tal como esse narrador, aliás, aqui e agora - a essas alturas, devem pensar tratar-se do autor. Mas não é. O André é outra pessoa. Aqui há apenas um narrador que narra de uma forma particular, meio humana demais, e ousa ficar de enrolação falando sobre a própria narrativa antes de finalmente começá-la. Mas na verdade, a história tem a ver com isso (e essa é a graça desse metalinguismo). É sobre um cara, Leonardo, um nome meio longo, tanto pra falar e escrever, e que portanto fica mais facilmente expresso com um simples "Leo".

- Cara, eu tava pensando num negócio… e se a literatura falasse tiopês?


Eles estavam em um bar. Leo e esse outro cara um pouco mais velho, que se chamava Nestor. Um nome meio estranho pra coisa não ficar muito presivísel, com nomes soando muito tipicamente brasileiros. Apesar do sobrenome do Nestor ser "Silva", o que é algo pouco criativo. Mas o sobrenome do Leo era Bittencourt. E então, Nestor Silva e Leonardo Bittencourt tentavam se engajar numa conversa enquanto faltava assunto. Dois cariocas entediados, sentados num bar no Rio de Janeiro. Eram ambos da Zona Sul (na verdade Nestor morava na Tijuca, mas para alguns isso é Zona Sul o suficiente), e provavelmente estavam em algum barzinho ~descolado~ de Botafogo ou talvez Lapa, porque "Baixo Leblon" ou "Baixo Gávea" já lhes seria meio Zona Sul demais. Tinham ido sozinhos. E estavam lá sem fazer nada.

- como assim tiopês cara? - indaga Nestor.

- Tiopês, cara - responde Leo. - Às vezes chamam de "miguxês" também. É tipo uma escrita meio zoada da internet. O "miguxês" vem de "miguxo" e o "tiopês" vem de "tiop", como se fosse "tipo" digitado errado…

- ah ta, to ligaod…

Leonardo sorri.

- Olha só, tu acabou de falar em tiopês de certa forma. Um tiopês da vida real, é disso que eu tô falando...

- como assim cara, tua sprite tem álcool? - Nestor dá uma risadinha. - Çaporrae é Ice?

Nestor estava largado preguiçosamente com seu terceiro chopp suando na mesa, derretido na cadeira com uma havaiana frouxa debaixo dos pés. Tinha um cigarro entre os dedos e ficava olhando as pessoas passarem na rua, em perfeito conforto sem que precisasse de assunto algum. Leo tinha arrumado um assunto, no entanto, mas isso também não o incomodava grande coisa. E sim, Leonardo tava bebendo refrigerante, e tinha um aspecto ansioso e estranhamente pensativo embora estivesse em plena sobriedade.

- Não porra, tipo - ele continua, falando sério - o tiopês é uma escrita meio ~molenga~ na internet. Não é possível exatamente alguém inverter as sílabas ou sons e pronunciar tipo "ERRAOD" na vida real, entende? O tiopês da vida real expressa a fala de uma outra forma, uma parada mais sutil… Tu falou "ligaod" mesmo sem ter pronunciado "LIGÁOD", entende?

- po, eu conheço um mlk que troca as silabas…

- Tá cara - Leo sorri. - Mas isso seria um caso excepcional, sei lá, ele deve ter algum distúrbio de linguagem ou alguma mania esquisita de criança, sei lá…

- nao cara, é desses lek playsson que fala TIUPAR, hahaha. 

Nestor imita o colega por um instante, fazendo um ~hang loose~ com os dedos:

- po koeh mlk, falae blz//? FALA TU pow partiu arpoador esse sabado mlk??

- Hahah...

-  TIUPAR/// - aqui Nestor está rindo e mandando um hang-loose duplo.

- Hahah, aff… eu tô falando sério cara. Isso aí de "TIUPAR" não conta. Mas se tu for pensar, esse lek tosco aí deve falar em tiopês mesmo, entende? Esses lek de praia falam tudo arrastado e bizarro, no Facebook deve ser uma desgraça, deve parecer que o teclado do mlk quebrou…

- olha aí o preconceito… ta chamando o cara de analfabeto? ele é gente boa po, da faculdade, passou melhor que eu esse periodo…

- Então cara, mas isso aí não tem a ver não. A sacada do tiopês é que ele não tem nada a ver com alfabetismo ou domínio da linguagem nem nada. Não tem nem a ver direito com a PESSOA, assim de uma forma estática. Uma mesma pessoa pode falar em tiopês num contexto, e falar mais "tradicionalmente" em outro. Você agora todo molengão aí na cadeira estaria mandando um puta tiopês, mas não tô falando que você é burro… mas é porque tu ia tá escrevendo tudo meio mole, tá me entendendo…?

- Hahah vai se fuder - ele se endireita na cadeira, batendo o cigarro no cinzeiro. - Mas tá, blz, eu saquei. Na internet eu acho que escrevo mais direito com algumas pessoas, sei lá, e na vida real todo mundo varia tb… Falar com professor, amigo, família, desconhecido, sei lá...

- Disso que eu tô falando - confirma Leo. - E voltando ao assunto, essa variação tinha que ser captada na literatura. Esse ~jeito~ de falar da vida real, saca? Isso podia ser transcrito.

Leonardo aguarda resposta. Nestor dá uma tragada e comenta:

- meio escroto chamar isso de "vida real" cara,  como se a internet fosse de mentira… internet é um bagulho sério pra caralho, e galera fala como se porra, como se fosse um mundo de mentirinha.

- Ah cara, isso é outra discussão… mas é meio escroto mesmo - Leo dá de ombros. - Sei lá… em inglês tem ~AFK~ que é tipo "Away From Keyboard" mas meio babaca falar isso no Brasil. Acho que "vida real" é só apelido mesmo, não é como se a internet fosse um universo falso e paralelo pra todo mundo…

- não não, eu sei po. tô falando que isso acaba tirando o valor da internet, é uma parada meio "subliminar". galera n dá valor cara, quem nao conhece vai ficar achando que internet é so zuera, sei lá…

Nestor começa a se perder em seu raciocínio e dá mais uma tragada. Leo aproveita pra retomar o assunto:

- Mas então, voltando, a literatura tem que acompanhar essas paradas. Como cê falou, o mundo "digital" não é muito levado a sério - vira uma parada meio paralela. Mas na verdade existe toda uma puta rede complexa de personalidades virtuais que se expressam de diferente formas na internet. Galera se julga por perfil no Facebook, "descobre quem é" quando arruma o Facebook. É uma parada que faz parte, mesmo que seja mó perfil zoado que não tem nada a ver com a pessoa "na vida real", a internet representa ela de alguma forma.

- É, é, com certeza… ~psicologia das redes~ essas paradas...

- É cara…  e uma forma de incorporar isso na vida (ou de pelo menos valorizar esse "falso-submundo" da internet), seria colocando na literatura. Não contando uma história toda hi-tech, mas dessa forma indireta que eu tô falando, pelo tal "tiopês", numa história normal.

- tu tá falando tipo botar todo mundo nos dialogos falando tipo como elas são no FB?

- Tipo isso, cara. A versão-de-Facebook da pessoa é uma parada que a gente imagina na vida real, às vezes tanto quanto imagina como é a pessoa real quando a vê no perfil do FB…

- Hehe verdade - reflete Nestor. - Mas sei lá cara, tu também é meio nerd de ficar viajando nessas paradas. Nem todo mundo sacaria o espirito eu acho…

- Mas aos poucos elas seriam treinadas. Tanto pela internet, quanto pela literatura. Elas iam descobrir traços de personalidades que não tinham reparado… isso acontece já cara, na literatura normal, em filmes e tal. A gente descobre personagens e às vezes percebe que na real a gente já conhecia eles antes… a gente se dá conta de novos traços de personalidade, conforme a gente conhece mais as pessoas.

- Blz, blz… só uma questao que pensei de tu ser meio assim viciado em internet. Mas falae, prossiga - ele dá mais uma tragada, atento à conversa.

- Então. Se liga: quando se lê a fala de personagens na literatura normal, geralmente é tudo mais ou menos a mesma coisa: algumas mudanças no estilo, na cadência, beleza. E se o autor achar necessário por algum motivo, o narrador pode descrever a entonação e o sotaque ou o ~jeito~ da pessoa falar e essas coisas. Mas com o tiopês, cara, essa intromissão do narrador não seria necessária. Tá sacando? A fala do personagem imediatamente já seria mais ou menos como se ELE PRÓPRIO a tivesse escrevendo. Seria a expressão instantânea, mais ou menos, de como ele é através da fala. Tipo quando o lek lá da faculdade fala com você, imediatamente isso te remete a todo um tipo de pessoa - Leo pensa por um momento, sentindo-se preconceituoso. - Uma pessoa que ele pode ser ou não ser, beleza, mas remete. Porque as pessoas se portam de maneiras esterotípicas mesmo, acontece, mesmo que elas não sigam a risca o tal estereótipo. Cê tá me entendendo...? O playboy se comporta mesmo como um playboy, independente dele ser ou não...

Nestor não parece lá muito atento. Numa mesa próxima, uma gargalhada feminina:

- HUAHUAHUAHAUHAUAHUAAH!!!

- hiuehiuehuie vai se fuder juliana, vc ta foda hoje pqp…

Aquela galera chapada a algumas mesas adiante estava se divertindo com alguma brincadeira misteriosa. Parece que a tal da Juliana havia metido um papelzinho na orelha do amigo, e talvez ele tenha levado um susto bizarro que ela achou muita graça. Não deviam ter mais do que 17 anos. E Nestor arregala os olhos sorridente quando sente aquele doce aroma de cannabis entrando-lhe pelo nariz. Sorri voltando-se ao amigo Leo:

- opa, olhae a brisa boa…

- Porra Nestor, cê tá prestando atenção???

- Tô cara, foi mal - ele parece se sentir mesmo culpado, até porque estava sexualmente atraído por aquelas menores de idade e achava isso meio desconfortável em seus vinte e tantos anos. 

Nestor fica cabisbaixo por um momento e dá mais uma tragada em seu cigarro (no caso, apenas tabaco). 

- entao cara - ele exala a fumaça. - Eu entendo o que tu tá falando. Mas essa parada de "como ele próprio escreveria" é meio duvidosa, porque se tu for botar a fala dum cara semianalfabeto, ou então de uma criancinha que mal sabe escrever… aí ia ficar como? N ia rolar direito essa teoria aí…

- Sim, sim - responde Leo prontamente. - Mas aí nesse caso o autor ia ter que fazer um papel bem abstrato de "tiopeização" da fala da pessoa.

- Hahahaha…

- É, pô - Leonardo sorri, falando sério. - A criancinha não sabe escrever mas a fala dela com certeza seria melhor expressa através da escrita "tiopeizada". O autor vai ter que escrever como a pessoa escreveria se soubesse escrever, sacou? É meio loco...

- Blz, saquei - Nestor sorri, bebendo o chopp já quente.

- Tipo - continua Leo - Um mlk poderia falar todo certinho, caretinha e tal, e outro menozin todo esbaforido poderia mandar um tiopês legal por exemplo. A mesma coisa rolaria com gente mais pobre e tal, às vezes a pessoa mal sabe escrever mas fala direitão, e outro pode falar mais largado mesmo - como eu falei cara, varia mesmo, não é nem algo muito da pessoa, é uma parada de contexto e do jeito que ela tá falando na hora. Vc mesmo aí já oscilou em falar de forma mais tiopeizada e às vezes menos, aqui numa única conversa. Tipo, às vezes eu acho que tu colocaria acento, às vezes eu acho que tu não colocaria nem vírgula ou letra maiúscula. O leitor vai poder sentir melhor o seu jeito de falar, sem o narrador ficar se metendo pra dizer se você tá mais ou menos "sério" ou sei lá…

- To ligado, to ligado… meio coisa de nerd msm mas acho que todo mundo ia acabar sacando com o tempo... como cê disse, né. Se tu pensar né, todo mundo tem aquela noção de que falar em caps-lock é TIPO FALAR GRITANDO SEM PONTUAÇAO COMO SE FOSSE UM ROBO INSANO TÁ LIGADO/// Hahuahua

- Hahaha, é, tipo isso aí. A galera ia entender...

Há uns instantes de silêncio depois de se recuperarem das risadas. Nestor fica pensativo, e de repente se empolga:

- Ae, bora chamar ele cara, bora ver…

Nestor aponta o garçom, um cara com mais de 60 anos e que trabalhou naquele boteco nos últimos 20 - sendo chamado pelo nome por uma centena de jovens que ele não faz ideia de quem sejam. Ele usava óculos e uniforme, tendo um aspecto vagamente formal, mas ao mesmo tempo falando de forma rápida e confusa. Toda hora gritava pedindo tantos chopps, com um sotaque nordestino. Ocasionalmente, gritava também petiscos com a especificação de que deviam vir "no capricho!!!", e é difícil dizer se isso gerava algum tipo de consequência entre os caras que trabalham na cozinha.

Enfim. É uma figura que todo mundo conhece (que trabalha em lugares com nome do tipo "BAR DO SEVERINO") e seria mesmo interessante ver esse personagem expresso dentro dos moldes de Leonardo. Porém, o próprio criador do Princípio Tiopêico não parecia se sentir muito confortável com isso:

- Nao cara, vacilo… nao dá pra traduzir sotaque direito na escrita também, geralmente vira uma caricatura meio idiota... Nem todo autor tem moral pra isso...

- Não pô, n é pra ficar zoando - ele levanta a mão e chama o garçom, sorrindo. - é so p gente ver como ele fala, o jeito mesmo, ta ligado// O sotaque mesmo tu diz na hora lá de escrever tua historinha...

O garçom vê o aceno de Nestor. 

- vai, pede uma coisa ai... quer outra sprite...?

- Cara, eu sei como ele fala - reflete Leo, incomodado. - N sei como sairia isso no tiopês. É como cê tinha falado… tem gente que parece meio imune a tudo isso. Ainda não pensei em como lidar com elas...

- entao pensa aí logo que ele ta vindo, vou pedir outra sprite pra tu…

Leonardo continua como se falasse sozinho:

- Acho que ele me parece um sujeito completamente alheio à internet ou algo assim. Ele não deve ter a menor ideia do que é o Facebook exatamente, e seus filhos ou netos ou sobrinhos devem aparecer mostrando fotos engraçadas da internet que ele ri, mas não entende bem o que é tudo aquilo. N sei mano. Ele é real demais. Meio impossível traduzir, tiopeizar, digitalizar e transcrever um cara desse… 

Nestor dá de ombros como se dissesse que "bem, esse é o dever da literatura". E enquanto isso, um pouco ansioso, Leonardo está sorrindo intrigado com seu devaneio, achando graça da ideia daquele sujeito ser uma manifestação concreta da realidade - intiopeizável. E então, finalmente, depois de ser fisgado por várias outras mesas, o sujeito começa a vir na direção dos nossos protagonistas. Instintivamente, Leo ergue latinha quase-vazia de refrigerante. O garçom entende o gesto. Faz um sinal positivo com o dedão e dá meia volta, rumo à cozinha.

- Porra! - resmunga Nestor.  - Haha aff, filho da puta…

Ele se levanta pra dar um soquinho no ombro do Leo.

- HEHEUIIHEUHIU - Leonardo solta uma risada esquisita. - Se fodeu...

- Aff, tu ia tá com cara de "XD" na tua história agora.

- Não, não - Leo sorri, talvez com um "x)". - Essas carinhas são meio falecidas… ninguém usa isso direito… Até porque os sites meio que já tem suas próprias carinhas e tal...

- é, essas carinhas puras ja é mais uma parada meio daquela galera de anime sei la… mas as vezes eu uso carinha quanto tô desconfortável, tipo um ":P" depois de fazer uma piada escrota pra descontrair pq eu acabei de pedir altos favores pra alguem que mal conheço na faculdade.

- Hahah é... ctz. E aquelas minas pseudo-simpáticas que vêm pedir borracha emprestado certamente poderiam ter um ":)" do lado de suas falas…

- Hehe, vdd...

- Mas teria que ser uma parada meio rara. Se fosse carinha tipo "smiley"/"emoticon" pré-feito, o livro ia acabar virando história em quadrinho com carinha pra tudo. E usar essas carinhas mais simples com parênteses mesmo ia ficar meio dadato, desconfortável, ou otaku "xD" ou sei lá... Não sei quem usa carinha ultimamente. Acho que eu só uso se for uma parada triste que não tenho o que responder e só mando um ":(" ou ":/"...

- Ae cara, vamo pedir a conta? - sugere Nestor de repente, se endireitando e encaixando as havaianas entre os dedos.

- Pô, já podia ter pedido - responde Leo sem se importar de ser interrompido. - Aff tipo, eu nem queria essa Sprite...

- Huehaehue agora tu vai beber kra…

Nestor se levanta, preguiçosamente apressado. O garçom chega com a Sprite e os dois logo pedem a conta. Ficam ali em pé, no meio daquela gente, ansiosos pra pagar e ir embora. Leonardo abre sua Sprite mesmo sem vontade e fica ali pensativo naquele cheiro de chopp e cigarro. Talvez escrevesse alguma coisa quando chegasse em casa. Nem era tão tarde… devia ser tipo umas 11 da noite, na vdd.




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