sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Os Cães de RZ-208

(Rascunho meramente experimental para o projeto "6017")

O terceiro tiro lhe abriu um enorme rombo no fucinho. Ele estava tão perto que seu corpo rolou aos meus pés com a cara borbulhando em sangue. Logo atrás, o outro cachorro vinha correndo.

Não dava tempo de recarregar. Virei a arma e dei uma porrada na sua cabeça, o que não fez muita diferença. Ele ganiu e continuou tentando me atacar com uma ferocidade meio infantil. Ele não me odiava, não achava nada. Só queria me morder porque achava que era isso que devia fazer. E aí ele conseguiu. Seus dentes agarraram no meu braço esquerdo e o direito pegou uma faca e rasgou sua garganta. Ele cambaleou pra trás engasgado com o próprio sangue. Virou e foi embora tossindo. Caiu e sangrou até a morte a alguns metros dali. Tive um pouco de pena dele. Mas pelos próximos dias, eu estaria infectado. Pensei que meu braço fosse cair.

Voltei na semana seguinte, já me sentia melhor. Que porra aqueles cachorros faziam por ali? Pareciam mutantes, virulentos, talvez algum tipo menor de wargs doentes. Observo um pequeno grupo à distância: três daqueles cachorros comiam a carcaça de um mais velho. Cachorros canibais. É engraçado pensar que canibalismo também acontece na espécie dos outros…




Tentei o caminho dos fundos. Dezenas daqueles cães se espalhavam pelo estacionamento, se cheirando, se coçando, lambendo as próprias bolas e dormindo. Pareciam mansos e preguiçosos, mas não acho que ficariam parados se um homem imundo passasse correndo com uma espingarda nas costas. Já tinha entendido: o estacionamento não era uma opção.

Subi numa árvore nos arredores da fábrica pra observar melhor. RZ-208, era como se chamava. Algum tipo de fábrica-laboratório abandonada. Ruínas de décadas passadas. Nome escroto com ares científicos. Um triângulo com o olho de Horus no meio já desbotava nas paredes. Esses logotipos são todos a mesma merda… certamente fizeram alguma coisa com aqueles cachorros e fecharam a fábrica. Sei lá, espero que tenham todos morrido mesmo, pouco me importo com esses filhos da puta. Só sei que agora eu preciso entrar lá de alguma forma. E esses cachorros já estão me enchendo o saco.

Ali estava. Do outro lado, um tronco passava por cima da cerca e de lá era possível saltar direto pro topo de um contêiner. Consegui fazer tudo em silêncio e nenhum daqueles cães me deu a menor atenção. Se me percebessem, não havia problema. O ideal era se manter no alto. Mas em algum momento, eu teria que descer…

Um barulho estranho vinha ali de dentro. Como o barulho de uma serra, sei lá. Imaginei um homem gritando, sendo desmembrado, um orc insano no porão de uma fábrica onde ocorriam experimentos bizarros, arremessando pedaços de braço pra uma matilha de cães-warg famintos. Era uma serra, eu tenho certeza. O resto eu espero que não. Parecia que a serra cortava alguma coisa metálica e soltava faíscas… não era nada automatizado, não havia mais energia naquela região e o som não era mecânico e estável o suficiente - alguém estava serrando alguma com todas as nuances e sutilezas de um trabalho manual. Alguém, fazendo alguma coisa. Alguém era responsável por aqueles cachorros.

Eu sei que parece mentira, mas por acaso eu simplesmente me deparei com um buraco no telhado de um dos prédios, por onde era possível descer por algum tipo de estante gigantesca e empoeirada onde um dia caixas enormes estiveram guardadas. Era a oportunidade perfeita. Era possível fazer tudo devagar e em silêncio. Fui por ali e entrei em um dos prédios… um tipo de armazém escuro, iluminado apenas pela luz do sol que entrava pelas janelas sujas e alguns outros rombos abertos aqui e ali. Algumas raízes também se espalhavam pelas paredes. "CARGA E DESCARGA" estava escrito numa delas num tom desbotado de vermelho. Tinha uma pichação ali dentro: "FILHOS DA PUTA" e mais nada. Não entendi se era feito xingando quem estava ali dentro; ou feito por quem estava ali dentro, xingando os que viessem de fora. Nos fundos, o som da serra continuava, ecoando pelo armazém.

Pet, pet, pet, pet, pet. De repente, escutei o rápido barulho daquelas patas disparando pelo chão. Ele pulou em mim. Estava sozinho. Não latiu. Precisava reagir e acabar com ele antes que os outros percebessem alguma coisa. Peguei sua garganta no ar. A boca aberta, os dentes afiados. Derrubei-o no chão, de barriga pra cima, e abri um rasgo tão grande em sua barriga que seus órgãos quentes escorreram molhados pra fora. Não demoraria muito pra perceberem o cheiro de sangue, se aqueles cachorros se importassem com isso. Deixei a criatura ali, morta, e corri silencioso na direção daquela serra. Não que eu procurasse uma serra. Mas quem quer que estivesse ali dentro, poderia me dar algumas respostas antes de possivelmente tentar me matar.

Não encontrei passagem alguma. O som ecoava de uma forma confusa e eu não sabia de onde vinha. Ansioso e preocupado, reparei que eu fui idiota o suficiente pra descer aquela porra sem sequer ser capaz de subir de volta pelo mesmo buraco. Escutei latidos do lado de fora. Eu estava fodido. O enorme portão da garagem estava escancarado, e logo centenas daquelas criaturas assassinas entrariam correndo em minha direção. Eu tinha uma espingarda, um revólver medíocre com quatro balas e uma faca. E esse era o tipo de coisa que apenas uma metralhadora salva. Era como se uma enorme horda de zumbis caninos estivesse por vir.

Lá estava o primeiro deles, sua silhueta carniceira contra o sol que vinha de fora. E depois outro, e mais outro. O primeiro veio correndo. Os outros dois andavam. E um mais velho apareceu atrás, mancando. Peguei o revólver e dei três tiros, o último deles na cabeça. Os outros cachorros, em vez de se assustarem, parecem ter gostado do barulho e começaram a correr também. Peguei a espingarda das costas. Eu tava fodido. Mais uns sete haviam aparecido e estavam vindo correndo na minha direção. 

Eu não tinha certeza se eu ia conseguir aterrorizá-los o suficiente com aquela espingarda pra eles darem meia volta e perceberem que mais valia a pena retornarem à lambeção-de-bolas no estacionamento. O que aqueles cachorros queriam afinal de contas…!? Sinceramente, eu não tinha o menor interesse em rasgar suas barrigas e estourar suas cabeças. Mas eles não estavam ajudando. Pareciam estar protegendo alguma coisa… e isso me intrigava e irritava profundamente.

POW! Tic, tic. 

POW! Tic, tic. 

E assim derrubei os dois mais rápidos e mais próximos no chão. Minha mira estava melhorando, e agora ainda faltava derrubar os outros cinco. Mas ainda havia um outro, silencioso, menor e mais rápido, que corria pelas minhas costas. POW! Derrubei um que vinha pela frente. Não vi o que chegava por trás. Mordeu a minha perna e eu virei no ato: tic, tic. POW! Arrebentei seu fucinho e um dente voou no meu rosto. Pela frente, três já me alcançavam. Um mordeu minha outra perna. Outro saltou no meu braço. O outro me derrubou no chão e ficou latindo na minha cara com um bafo quente e horrível, fazendo um vago esforço confuso pra tentar arrancar o meu nariz. Tentei chutá-los, mas outros chegavam. Eu já estava todo rasgado quando eu me dei conta de que o barulho de serra ao fundo havia parado e uma coisa enorme se aproximava. Uma mão gigante e cinzenta me deu uma porrada e meia-dúzia de cachorros foram lançados no ar em ganidos chorosos.

- SAIAM DAQUI.

Eu não entendi que porra estava acontecendo. Mas ele rugia e abanava os braços. Estava expulsando aqueles cachorros de cima de mim. Latiram, choramingaram e se afastaram… alguns, ainda voltaram correndo com o rabo abanando. Eles o conheciam e o respeitavam. E aquilo não era um orc psicopata desmembrador de adolescentes. Era um troll enorme e sozinho que vivia naquele lugar.

- O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI?

- Quem é você…? - eu pergunto, mais ensanguentado do que gostaria.

- EU MORO AQUI, EU FAÇO AS PERGUNTAS.

Sua voz era grave e estrondosa, mas ele não precisava falar lento apenas por ser um gigante.

- Eu… só vim pegar uma coisa - me coloco de pé, com uma certa dificuldade.

- VOCÊ MATOU METADE DOS CACHORROS, IMAGINO QUE SEJA IMPORTANTE.

- Pode ter certeza que o que eu derrubei não chegou a 10% do que ainda tem ali fora - respondi. 

Ele continuou ouvindo.

- Bem… eu só queria pegar um composto… me pagaram na Fronteira 55 e era apenas pra eu encontrar um laboratório abandonado e encontrar um bendito composto. Mas eu não sabia que haveria milhares de cachorros assassinos canibais mutantes e um troll guardando um tesouro em uma caverna como se eu tivesse perdido em um conto medieval.

- NÃO HÁ TESOURO NENHUM. E AQUI NÃO É UMA CAVERNA. E SE VOCÊ NÃO REPAROU, ESSES CACHORROS NÃO SÃO NORMAIS.

- Wards? - pergunto.

Ele sorri, com seu rosto enorme e olhos sérios.

- NÃO, CARA, MUITO PEQUENOS. SÃO HIENAS. SÃO METADE HIENA. VEM COMIGO, VAMOS PEGAR ESSE SEU COMPOSTO.

Subitamente, aquele brutamonte torna-se um sujeito simpático e agradável, me guiando por uma grande escadaria que pra ele é pequena e estreita, que desce a algum tipo de porão abafado onde aparentemente ele tentava construir um robô com bastante precariedade.

- EU NÃO TENHO NADA A VER COM ESSES CACHORROS - ele continua. ELES APENAS VIVEM AQUI, COMEM LIXO. O IMPÉRIO ÀS VEZES DERRUBA LIXO NA PARTE DE TRÁS DO ESTACIONAMENTO. ISSO É UM GRANDE PROBLEMA DE COMUNICAÇÃO. CÃES-HIENA CANIBAIS ASSASSINOS E VULTOS DE UM TROLL NUMA FÁBRICA ABANDONADA ONDE DESPEJAM LIXO TÓXICO IMPERIAL. É O SUFICIENTE PRA INVENTAREM TODO TIPO DE HISTORINHA DE TERROR.

Ele vira por uns corredores, observa umas prateleiras e armários com um olhar pensativo. Há sangue em alguns lugares, e eu não tenho muito interesse em saber como é que aqueles rastros pararam, por exemplo, no teto.

- AH, AQUI ESTÁ O SEU COMPOSTO - ele abre uma enorme gaveta, repleta de frascos de vidro empoeirados. - IMAGINO QUE SEJA ISSO QUE VOCÊ ESTÁ PROCURANDO. PODE LEVAR O QUANTO QUISER, NÃO SÃO IMPORTANTES PRA MIM. 

- Ahm, obrigado - respondo, me adiantando com a mochila.

- SE VOCÊ PARAR PRA PENSAR, ESSES CÃES REPRESENTAM A ANARQUIA.

- O quê?

- OS CÃES, OS CACHORROS-HIENA. ELES SÃO A FORÇA ANÁRQUICA DA HISTÓRIA. EU NÃO SEI SE VOCÊ ENTENDEU, MAS ELES NUNCA QUISERAM TE MATAR.

Bem, eu estou vivo e com cortes e rasgos talvez um pouco mais superficiais do que se aquelas aberrações caninas quisessem realmente me despedaçar. De certa forma, eles não pareciam exatamente esforçados. Qual era o problema deles, afinal?

- ELES SÓ ESTAVAM BRINCANDO - explica o troll. - ELES NÃO SABEM O QUE FAZER QUANDO TE PEGAM, ENTENDE? ELES NÃO SABEM O QUE QUEREM. E NEM VOCÊ. MAS AINDA ASSIM, VOCÊS LUTAM QUE NEM UNS IDIOTAS.

Ele começa a rir, me puxando pelo ombro e me emburrando pelo caminho da saída. Fico pensativo, sem saber se devia me sentir ofendido. Pelo menos já tinha enchido a minha mochila daqueles compostos, embora ainda tivesse sobrado umas belas dezenas por lá… 

- EU TÔ ZOANDO, CARA. NÃO ESQUENTA. ISSO NÃO QUER DIZER NADA - ele dá de ombros. - TUDO HOJE EM DIA PARECE UMA METÁFORA, UMA ANALOGIA PRA ALGUMA HISTORINHA CONTRA O IMPÉRIO. MAS ISSO NÃO QUER DIZER PORRA NENHUMA MESMO. É SÓ AS COISAS COMO ELAS SÃO. VOCÊ VEIO AQUI, ELES VIERAM BRINCAR, E VOCÊ ATIROU EM TODOS ELES NA CABEÇA. É A VIDA. NINGUÉM NUNCA SABE O QUE ESTÁ FAZENDO.

- Eu pensava que eles iam me matar - explico.

- IAM MESMO, SE A BRINCADEIRA CONTINUASSE. 

Subimos de volta as escadarias e ele me leva até o estacionamento. Os cães-hiena nos observam desinteressados.

- OLHA SÓ - ele explica. - PEGA O PORTÃO DA DIREITA, ELES NÃO VÃO ATRÁS DE VOCÊ DEPOIS DA CERCA. O IMPÉRIO NÃO PASSA POR ALI, SÓ CHEGAM PELO OUTRO LADO. BOA SORTE.

Final da história: voltei pra Fronteira e consegui uma boa grana com aqueles compostos que eu nunca entendi pra que serviam. Por uns dias, eu tive impressão que todos os meus membros iam cair e acabei gastando metade do dinheiro pra conseguir sobreviver às infecções daqueles cachorros mutantes. E quando voltei pra cidade, é óbvio que eu contei uma história completamente diferente.

RZ-208 era na verdade um antigo Campo de Concentração do Império, assombrado por um troll demente e sua legião de cães-ward assassinos, aliados a um ex-cientista orc psicopata que havia enlouquecido e desmembrava jovens elfos que se perdiam na floresta numa perpétua continuação dos experimentos doentios que ocorriam naquele laboratório, e ao mesmo tempo construía um terrível robô satânico com propósitos misteriosos. Ninguém nunca mais ia ter coragem de botar os pés naquela fábrica. E quando eu precisasse, eu poderia voltar pra lá e me arrumar alguns daqueles compostos com aquele troll indiferente. O que eu não sabia, era que uma parte da minha história era verdade: aquele laboratório realmente havia sido um Campo de Concentração do Império, e eu estava revendendo o resultado de experimentos doentes e que arruinaram vidas até seus últimos suspiros de sofrimento. Mas isso não quer dizer nada. É só as coisas como elas são, tristes e completamente despropositais.

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