sábado, 8 de dezembro de 2012

Um Ensaio Sobre Zumbis

(Trecho do conto "O Navio", Parte III: Zumbis)

Por definição, zumbis consistem basicamente em cadáveres reanimados. Pessoas que, embora tenham morrido por dentro, ainda possuem um corpo operante. Mas a questão é que a coisa não é tão simples assim. Essa morte interna do zumbi não traz de volta uma carcaça humana feliz e serelepe. O zumbi, na verdade, é um corpo podre, descuidado e apático, cujo único interesse é comer a carne daqueles que ainda não são zumbis. E só pra constar, esses mortos-vivos canibais e agressivos parecem ter um curioso interesse por cérebros.

É isso aí: zumbis são terríveis cadáveres ambulantes e comedores de cérebro. A questão por trás deles não é nada mais do que a morte. O zumbi representa o puro medo da morte: olhe-os no olhos e estará encarando a terrível imagem de um corpo sem vida. E como se a aparência do zumbi não bastasse pra relembrar a sua mortalidade, essas criaturas ainda se responsabilizam por realizar o serviço ao devorarem a sua carne. É engraçado que, na realidade, os zumbis não costumam ter pressa alguma. Eles mancam e rastejam. E enquanto te perseguem, costumam ser até bem frágeis. Embora seja difícil de matar o que já está morto, um bom zumbi morre pela segunda vez assim que leva uma boa pancada na cabeça. De preferência, é claro, um tiro explosivo e sangrento de espingarda.


Falando assim, parece fácil… mas os caras são persistentes. A morte é persistente. No começo, você parece se livrar dela com facilidade. Com o tempo, porém, ela se aproxima, ficando cada vez mais eminente e assustadora. É aí que, ao se ver cercado de centenas de cadáveres, você percebe que não é imortal. Hoje ou amanhã, você vai ter o mesmo rosto daquelas criaturas decompostas que te perseguem dia e noite. Às vezes um parente, às vezes um vizinho. É apenas uma questão de tempo até ser alcançado e os zumbis se juntarem em multidões grandes o suficiente pra derrubarem até uma equipe carregada de fuzis e metralhadoras. Mesmo sendo meros cadáveres burros, frágeis e desarmados.

Mas é claro que essa lenta tortura não acaba aqui. Se você for insistente, você pode ter um futuro diferente daquele em que se é meramente devorado por mortos-vivos. Caso você salve o seu corpo de ser completamente dilacerado, ainda há a chance de retornar à vida como um zumbi. Pois é, morra para sempre ou junte-se aos mortos-vivos. De qualquer forma, na verdade, você estará morto. Você, como era antes, vai ter deixado de existir. Sua consciência acabou e sua identidade se perdeu para sempre. Tudo que restará será um corpo ativo, estúpido e faminto, unido a uma multidão de seres igualmente anônimos e idiotas.

No fundo, então, ninguém quer acabar como morto-vivo. Porém, se transformar num deles acaba sendo o destino inevitável daqueles que insistem em sair na frente no universo caótico do holocausto zumbi. Em algum momento, acabarão cometendo algum deslize. Acidentalmente, acabarão cedendo. Na ambição desesperada de se obter êxito, decisões e riscos estúpidos serão tomados. E então, num ato final de fraqueza, acaba-se vendendo a alma ao diabo para comprar o próprio corpo. Na persistência das massas devoradoras de cérebro, acaba-se entrando no acordo inimaginável de se tornar meio morto e, ao mesmo tempo, meio vivo. Sobra apenas a superficialidade material. E é isso. A única proposta oferecida é essa: fracassar é virar um morto-morto e o ápice do sucesso é virar um morto-vivo.

Parece meio doentio que se opte por ser um zumbi, mas a verdade é que esse é um processo quase que acidental. No contexto desastroso de um apocalipse zumbi, a meia-morte é a alternativa natural dos vacilantes que não aceitam os extremos de viver ou morrer por completo. Porém, mesmo que se compreenda a pressão psicológica e a suposta "vitória" de se driblar a morte absoluta, virar um zumbi e se juntar à maioria não é algo nada convidativo. Como costumam tender os acordos de venda de alma ao diabo, o "sucesso" não vale nada a pena. O zumbi, além de ser fisicamente deficiente, tem uma mente estúpida e limitada. Ele é alguém que foi dominado pela persistência das massas e sucumbiu a multidões de mortos-vivos que devoraram seu cérebro e o deixaram sem inteligência alguma. O zumbi é um escravo da indecisão, do meio-termo, do pequeno momento de vacilo e falta de atitude que o prendeu para sempre sob a maldição de ser um morto-vivo, de nunca se estar lá nem cá, de não ter personalidade própria. Tudo o que resta na vida de um zumbi, então, é fazer a única coisa que ele ainda parece saber fazer, que é justamente a coisa a partir da qual ele nasceu: consumir. O único e último ensinamento que o estúpido zumbi ainda lembra de seus momentos finais vida. Consumir carne humana e cérebros e fazer com que mais e mais pessoas se tornem hordas de acéfalos cambaleantes e esfomeados. Eis a única referência dessa triste criatura.

No final das contas, ser zumbi é ser escravo dessa eterna rotina pobre e sem perspectiva. É ser escravo de uma fome insaciável que só não mata pois já se está morto. Ser zumbi é ser eternamente cambaleante, burro e faminto. 

Então, apático e imbecil, o zumbi rasteja atrás de cérebros frescos e espera que um dia, finalmente, ele morrerá pela segunda e última vez. Ansiosa e inconscientemente, ele leva uma vida sem propósito aguardando pelo dia que, da janela de um prédio abandonado, um tiro explodirá o pouco que ainda lhe resta na cabeça, tirando-o dessa terrível maldição. E com o dedo no gatilho, estará um radical. Alguém que ainda faz parte da minoria viva-viva, alguém que ainda não morreu no corpo e nem na alma. Alguém que não se vendeu ou vacilou. Lá estará um membro da pequena resistência que ainda se mantém íntegra e traça seu destino com clareza e uma postura firme. Ou se mantém viva, ou morre por completo. Integridade. Essencialmente, é isso que separa um vivo-vivo de um morto-vivo, uma pessoa decente de uma aberração sem cérebro.

(O conto "O Navio" completo está disponível pra download aqui: https://dl.dropbox.com/u/20856498/xDDDre%20-%20O%20Navio.pdf)

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei. Vou a exploraire o blog, ó gajo, com vagar. O passo do zumbi.

:*