sábado, 24 de novembro de 2012

Zutu e a Salamandra

(Trecho fofo de "Zutu, Episódio I: A Saga Começa")

- SOCORRO, SOCORRO! ELE PEGOU MINHA BOLSA!

Coberta com uma capa marrom, aquela pequena criatura corre com suas rápidas perninhas verdes. Em suas mãos, uma bolsa vermelha. Uma mulher gorda e suada corre logo atrás:

- ALGUÉM ME AJUDA!

Zutu estava comendo um sanduíche repleto de plantas e outros vegetais, sentado no topo de uma loja de dois andares. Ali em cima, num canto, um bebê uniformizado mexia em algum tipo de instalação elétrica, e Zutu achava engraçado sentir-se mais velho do que aquele outro humano liso e careca. Foi ali, ao final se seu sanduíche, que Zutu escutou os gritos.

- ELE FOI POR ALI!

Zutu logo se levanta. Mastigando o último pedaço de sua refeição, em pé ali no alto, ele segue com o olhar a direção pra onde a mulher apontava. Lá estava: uma coisinha magra e pequena, veloz, com uma capa marrom e uma cauda verde saltando pra fora. Parecia ser algum tipo de salamandra bípede. Enquanto isso, lá embaixo, pessoas começam a se juntar ao redor da mulher.

- Foi muito rápido! - ela parece chorar enquanto explica. - Eu estava andando aqui mesmo quando… quando essa coisinha terrível arrancou a bolsa dos meus braços e saiu correndo!

Dois Bots, apressados, se aproximam. Zutu vira-se pra direção do pequeno criminoso, e ainda consegue vê-lo dobrando uma esquina. Ali de cima, Zutu salta em meio àquelas pessoas. Todos se viram, surpresos, e Zutu explica aos Bots:

- Eu vi, ele foi por ali. 



Zutu aponta a direção e os Bots disparam pelo ar, flutuando em alta velocidade. Zutu olha pra trás, curioso, e observa que a mulher, consolada por outras pessoas, seca suas lágrimas. 

- PARADO, VOCÊ ESTÁ PRESO!!!

Assustada, a salamandra olha pra trás. Eram dois Bots, redondos e piscantes, que se aproximavam rapidamente. Com a bolsa vermelha nos braços, a criaturinha não ousa parar de correr. Mas então, de repente, percebe-se sem saída: uma larga avenida repleta de carros velozes cruza seu caminho. Os Bots, já a poucos metros, piscam e avisam:

- VOCÊ ESTÁ PRESO! PARE AGORA MESMO!

Sem ter alternativa, o criminoso corre para o meio da rua e salta em cima de um carro em movimento, logo depois saltando pra cima de outro e mais outro, até a segura calçada do outro lado da pista. É tudo tão rápido que os carros sequer se dão conta do que acabou de acontecer. Os Bots, então, se entreolham.

- VAMOS!!!

Um dos Bots avança, mas um enorme ônibus o atinge com violência. O veículo freia, e uma série de outros automóveis começa a bater e freiar logo atrás. Soltando faíscas e apitando, o Bot atingido cai no chão e vibra como se tentasse flutuar novamente. Está brutalmente danificado na lateral. E em poucos segundos, algo explode dentro dele, soltando uma fumaça fina e escura. Seu olho se apaga.

Do outro lado da larga rua, o ladrão corre. O outro Bot avança em sua direção, sem dificuldades, pois já não passam mais carros na pista. Todos os motoristas pararam e desceram de seus veículos pra resmungar e observar o que estava havendo. Alguns, preocupados com o Bot destruído, ligam para emergência.

- RENDA-SE! RENDA-SE! VOCÊ ESTÁ PRESO!

O Bot sobrevivente avança e apita, mas não consegue mais ver o criminoso. Aquela rápida salamandra já havia corrido metros adiante, saltando sobre outros veículos e tomando atalhos mal iluminados. Mas isso não foi o suficiente.

- Te peguei.

De repente, um grande braço. Era Zutu, que segura a salamandra pela barriga e a puxa pra um beco escuro. 

- Ei!!! - a coisinha grita, com uma voz que parece borbulhar. - Me solta!!!

Zutu apenas murmura:

- Silêncio.

- Ah, me deixa em paz!!!

A coisinha se debate e parece produzir algum tipo de secreção gosmenta através de sua pele esverdeada. Ainda assim, melado naquela coisa, Zutu segura a criatura com firmeza, puxando-a contra o peito. Apreensivo, ele repete:

- Silêncio, silêncio…

Zutu se abaixa nas sombras, segurando o bandido nos braços. Confuso, o ladrão pegajoso sossega. Então, trazendo uma rajada de vento, um Bot apressado passa direto, piscando e apitando, levantando poeira no beco onde Zutu e a salamandra se escondiam. Após alguns segundos, Zutu pergunta:

- Por que você está fazendo isso?

A pequena salamandra, irritada nos braços de Zutu, pergunta:

- Por que VOCÊ está fazendo isso!?

Reparando naquela voz fina como a do filho de Boca, Zutu faz outra pergunta:

- Qual é a sua idade?

- Eu tenho 11 anos - responde a salamandra, ainda aborrecida, sem entender o propósito daquilo.

- Isso é muito pra você?

- Bem, pra mim é muito. É a minha vida inteira. Mas não, eu não sou adulto. Eu sou uma criança pra minha espécie, se é isso o que você quer saber…

Zutu acha confuso, sem ter muitas noções do que quer dizer uma infância de verdade.

- Então é isso - resmunga a salamandra. - Respondi sua dificílima pergunta. Agora me coloca no chão e me deixa em paz!

- Eu não posso - responde Zutu.

- Por quê!?

- Porque você roubou essa bolsa. 

Rapidamente, Zutu toma a bolsa vermelha dos bracinhos do criminoso, soltando-o no chão. Ele fica pensativo, encarando Zutu com seus olhinhos brilhantes e irritados.

- Então por que você me ajudou!?

- Porque eu estava pensando - Zutu começa a observar a bolsa. - Tudo começou por causa disso, dessa bolsa, que aquela mulher provavelmente comprou com os créditos que ganhou com o seu trabalho.

- E o que eu tenho a ver com isso!? - questiona a salamandra.

- Espera - retruca Zutu. - A bolsa pertence a ela, ela conquistou a bolsa. Mas então, você surgiu e a roubou, fazendo aquela mulher sofrer. Você cometeu um ato de maldade, o que é proibido...

- Que drama…

- Pra resolver esse problema, então, eu preciso pegar a bolsa e devolver pra mulher. Isso vai dar certo, ela vai ficar feliz de volta...

A salamandra fica em silêncio, observando o raciocínio de Zutu sem muita paciência. Virando-se pra ela, então, Zutu pergunta:

- Mas e você? - ele sequer espera uma resposta. - Se você pegou a bolsa, é porque você também precisa dela. E tirar a bolsa de você, também, faria você sofrer. Vocês dois teriam sofrido em vão e isso seria ruim. Mas no seu caso, na verdade, você pode, pois foi você que causou sofrimento à mulher, e você sofrer em retorno seria equilibrar a justiça. Mas ainda assim, por outro lado, você já estava sofrendo sem a bolsa. Tanto é que precisou roubá-la. Então, a questão é essa. É exatamente isso…

- Do que você tá falando!? - interrompe a salamandra.

Curioso, com a testa franzida, Zutu pergunta:

- Por que você quer essa bolsa, afinal?

- Eu não quero essa bolsa! - esbraveja a criaturinha. - Eu quero vender, pra conseguir créditos, comprar coisas como todo mundo. Eu não preciso dessa bolsa ridícula!

- Mas… então por que você não trabalha pra conseguir créditos?

- Porque eu tenho 11 anos!

- E daí? - Zutu não entende. - Eu tenho 6 dias.

- É diferente com vocês humanos! - ela explica. - Vocês já nascem programados como se tivessem 20 anos, já sabem fazer tudo. Eu não sei… simplesmente não aprendi a fazer nada! Como você espera que eu ganhe créditos pra sobreviver!?

- Mas como isso é possível? - indaga Zutu, perplexo. - Todos nascem sabendo, pelo menos o básico…

- Camarada, o mundo não é igual pra todas as pessoas…

De repente, os dois se silenciam e sentem um calafrio. Era o Bot, voltando pelo mesmo caminho, sem pressa, provavelmente assumindo o fracasso de não ter recuperado a bolsa e capturado a salamandra. Ainda em sinal de alerta, seu olho pisca amarelo e seu corpo redondo e flutuante apita algumas vezes.

- Espere aí - Zutu murmura. - Eu preciso devolver essa bolsa…

A salamandra, frustrada, não diz nada. Zutu corre pra fora do beco, em direção ao Bot.

- Ei! - ele diz. - Eu consegui a bolsa!

O Bot vira-se pra trás, surpreso.

- Onde você encontrou a bolsa?

Zutu não havia pensado no que dizer. Não poderia dizer que a tirou da salamandra, pois o Bot se apressaria em eletrocutá-la e colocá-la num saco preto. Zutu perderia a oportunidade de compreender aquele misterioso enigma. 

- Eu… encontrei no chão - explica Zutu. - A salamandra estava fugindo, eu vi, e então eu corri atrás… mas acho que ela se assustou e largou a bolsa no chão. Eu peguei, mas no final ela acabou fugindo.

- Obrigado - responde o Bot. - Você deve ser muito veloz. Pra onde ela foi?

- Eu não sei - diz Zutu, pensando no que inventar. - Acho que ela seguiu para o norte, mas ela muda de direção constantemente…

- Sim - confirma o Bot. - Ela tenta nos despistar. Provavelmente, a essas alturas, já deixou a Cidade 17.

Zutu fica pensativo e se dá conta: é óbvio que a salamandra não está mais no beco, silenciosamente aguardando para seguir sua conversa com um completo estranho. Como diz o Bot, a essas alturas, ela já deixou a Cidade 17…

- Obrigado - repete o Bot, despedindo-se. - Você daria um bom Policial Orgânico. 

O Bot segue seu caminho e Zutu volta às pressas. Aos chegar lá, observa que estava certo: a salamandra havia desaparecido.

Passou os próximos longos minutos preocupado: deixou um criminoso fugir e ainda por cima mentiu pra um membro do Sistema. Mentir, na verdade, era errado em qualquer situação. Afinal, mesmo que algumas mentiras não causem sofrimento, mentir apenas pra agradar uma pessoa é errado, pois esse agrado será apenas uma ilusão. Em algum momento, a pessoa enganada vai entender que a sua felicidade é uma mentira, e ficará ainda mais triste e frustrada, por ter sido trapaceada. Realmente, então, deve-se sempre falar a verdade… por mais que, certas vezes, ela possa incomodar as pessoas. Dessa forma, a pessoa não ficará chateada por você ter falado a verdade… e sim com a simples realidade dos fatos, pois você apenas os descreveu sem fazer alterações. Pelo menos, era assim que os bebês eram instruídos a falar a verdade.

Ainda assim, sabendo de tudo isso, Zutu havia mentido. Portanto, sentia-se culpado, mas não havia alternativa… aquela salamandra era a poça de um vazamento muito distante. A mulher e a salamandra eram poças de um complexo vazamento em algum lugar, talvez além da própria Cidade 17. Se Zutu deixasse o Bot levar aquela salamandra embora, a poça seria eliminada… mas o vazamento continuaria em algum lugar e nada seria verdadeiramente resolvido.

Zutu estava confuso. Tentava operar de acordo com o que as suas programações o ensinaram como certo e errado, mas na verdade a coisa parecia ser bem simples: certo é fazer o bem a alguém, e errado é fazer o mal. Sendo assim, deixar aquela salamandra levar uma série de tiros elétricos não seria bondade alguma. E deixar aquela mulher sem sua bolsa, porém, seria maldade, pois ela parecia muito triste a ponto de até mesmo chorar. Dessa forma, realmente, Zutu conseguiu uma solução que não fazia ninguém sofrer: nem a mulher, nem a salamandra.

Mas é preciso pensar mais longe: deixar a salamandra fugir pode ter sido um erro, pois ela pode voltar para cometer os mesmos crimes e fazer outras pessoas sofrerem. No entanto, prender a salamandra seria apenas secar uma pequena poça em um enorme vazamento. Por mais que ela ficasse presa, impedida de cometer seus crimes ao viver dentro de uma jaula, o vazamento continuaria para sempre, e certamente surgiriam outras salamandras do mesmo problema misterioso que deu início a tudo aquilo. Por isso, de certa forma, Zutu não se sente tão culpado de ter deixado a salamandra fugir. Ela certamente deixou rastros que podem guiá-lo até as raízes daquele elaborado problema… e o vazamento, enquanto isso, aguarda ser consertado. 

Vagando pelas ruas, sem nunca ter certeza de estar mesmo fazendo a coisa certa, Zutu percebe: no chão, pequenas pegadinhas gosmentas. A salamandra, recentemente, havia passado por ali.

Excitado, Zutu deixa suas reflexões de lado e segue aquelas pequenas pegadas molhadas, logo se deparando com um gigantesco muro alto e cinzento. Em enormes palavras, está escrito: "FIM DOS DOMÍNIOS DA CIDADE 17". E ao longo daquela longa muralha de concreto, Zutu repara: um pequeno rastro pegajoso.

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