domingo, 9 de outubro de 2011

Circo (A Revolução)

- E aí, elefante?

Ele me olha com seu enorme olho preto.

- Eu sei que você tá preso aí há anos. Desde filhote, acorrentado nesse maldito tronco estúpido…

Respirando forte e calmamente, ele puxa um punhado de plantas secas com sua tromba e bota na boca. A tenda é grande, mas é abafado e incômodo ali dentro.

- Você já deve ter tentado escapar muitas vezes quando mais novo… essa história é velha. Mas dizem que elefantes têm uma ótima memória.

Dou uns tapinhas na pele grossa e cinzenta de seu rosto camarada...

- Você certamente se lembra… aquele esforço frustrante, a corrente apertada no pé, rasgando sua carne enquanto você forçava mais e mais e não chegava a lugar algum…

O elefante me espia com seu olho curioso e mastiga sua comida.


- Talvez você tenha escapado uma vez ou outra - continuo. - Correndo de madrugada pelo circo, assustado, até ser flagrado pelo pessoal… você devia ficar apavorado.

Abana um pouco as orelhas. Pisca lentamente seus olhos sujos de remela.

- Você abaixava a cabeça quando te pegavam… com aquelas lanternas na cara, você morria de medo que fizessem alguma coisa com você. Devia ser mesmo horrível, a sensação de não ter escapatória…

Alguns filetes de luz solar conseguem entrar, fazendo brilhar uma poeira tranquila e flutuante por ali.

- Dizem que elefantes tendem a urinar quando ficam com medo, não é? Você devia mijar ali mesmo…

Dou de ombros, suspirando.

- Não tem problema, nós humanos também somos assim quando mais novos.

Um pouco inquieto, o elefante estica sua grande tromba e busca mais folhas naquele chão de terra mal tratado.

- Mas eles deviam morrer de rir quando te viam abaixando a cabeça e mijando na frente deles.

Minhas mãos tocam o rosto enorme e tranquilo do animal...

- Eles te batiam mesmo assim, não é? Você estava lá rendido, abaixado, com as pernas molhadas na própria urina… e eles te batiam mesmo assim. Com aquelas enormes varas de madeira e ferro. Batiam nas suas pernas, nas suas costas… até na sua jovem tromba, que se esforçava inutilmente pra proteger o rosto daquelas pancadas brutas.

O elefante mastiga, desviando o olhar de mim e encarando o vazio com seus grandes olhos pretos.

- Eu conheço essa história - prossigo. - Pancadas gratuitas, furos, cortes, ferro quente… hoje em dia, até choques elétricos. Sei bem como funciona. Acontece com todos vocês… com os leões, com os tigres, com as focas, com os cavalos. Acontece com todos nós.

De repente, sorrio.

- Mas você…? Você é o elefante.

Ele se vira pra mim, como que perguntando o que eu queria dizer.

- Você não está enjaulado como os outros. Você cresceu, você está livre… vem comigo.

Começo a andar pra fora daquela enorme tenda escura. O elefante, confuso, tenta me acompanhar. Chego do lado de fora e faço sombra pros olhos com uma das mãos.

- Vem - eu digo, ali no sol. - Vamos embora.

De repente, algo o machuca. Ao ter a perna segurada pela corrente, ele balança a cabeça e resmunga, enorme.

- Vamos, força… você consegue!

O elefante se senta, derrotado. Suspiro e volto pra escuridão morna e empoeirada da tenda.

- Eu sei… eu sei…

Ele resmunga novamente, murmurando daquele jeito que os elefantes fazem. Volto até ele e acaricio seu pescoço enrugado, o rosto pensativo, traumatizado…

- É difícil esquecer. Eles fazem de tudo pra gente não esquecer…

Com a palma das minhas mãos, sinto as presas sujas e incompletas do elefante violado…

- Eles acabam com o seu orgulho, tiram suas presas, te humilham…

O elefante vira a cabeça calmamente quando as toco, mas já é o suficiente pra me lançar pra trás. Chego a cair sentado na terra, enquanto ele me observa aborrecido com o rosto virado.

- Não posso nem imaginar o efeito desmoralizante que isso deve ter pra vocês…

Me levanto, limpando as mãos na calça. Ele suspira profundamente.

- Talvez seja como perder todos os dentes, o cabelo, o nariz, as orelhas… acabar castrado, amputado, deformado de alguma forma. Sei lá… Fraco e nu, ridículo, exposto diante de um exército uniformizado e seus sorrisos sarcásticos.

Fico um tanto chateado, pensativo.

- Não sei… ele fazem de tudo pra nos colocar pra baixo…

O elefante se põe sobre suas quatro patas novamente. Sorrio de repente.

- É isso aí - eu digo. - As coisas mudam.

O elefante parece empolgado ou curioso. Com sua tromba forte, ele parece tentar sentir o meu rosto.

- Agora é tudo diferente! Olha o seu tamanho!

Acho graça, abraço aquele longo músculo cinzento.

- Ele querem nos frustrar, nos sufocar, humilhar, reprimir… blá, blá, blá!

O elefante começa a ficar agitado. Por precaução, largo sua tromba e me afasto com cuidado. Recuo pra fora da tenda, falando mais alto:

- Sabe por que eles fazem tudo isso…?

O grandalhão está tramando alguma coisa. Respondo:

- Fazem isso porque sabem muito bem que nós somos mais forte do que eles!

De repente, o elefante levanta suas patas dianteiras e faz soar sua tromba a todo vapor.

A corrente explode. Duas ou três tentativas, e a corrente se rompe, arrancando aquele pequeno tronco de madeira do chão. Você não é mais uma criança. Do lado de fora da tenda, o sol brilha. O elefante enorme corre pra luz, chegando num grande pátio ao ar livre, repleto de caixas e ferramentas e jaulas com os mais variados animais. Há um mundo lá fora. Camelos, avestruzes, tigres, leões, macacos e cavalos enormes. Todos ficam agitados e curiosos. Sorrio.

- O circo é ali - aponto.

A longos metros de onde estávamos, um pequeno aglomerado de tendas gigantescas. Pode-se ouvir palmas e gargalhadas a distância. Algumas pessoas circulam ao redor, carregando equipamentos e coisas coloridas…

- Vai lá, corre! - digo a ele. - Vou soltar os outros animais.

O elefante me encara, apreensivo. Fantasiando que ele me fazia uma pergunta, respondo:

- É mais fácil do que você pensa, amigo. Não há cadeados, não há fechaduras. Apenas uma tranca frágil e ridícula separa vocês da liberdade esse tempo todo. Apenas isso, e o medo de tentar.

Pequenos vira-latas surgem latindo. Macacos gritam e felinos vão e voltam em suas jaulas, inquietos, curiosos.

- Você aí, roqueiro!!!

Acho que ele me chamou assim por causa do moicano.

- O que você tá fazendo!?

O elefante começa a urinar quando vê o homem aparecer com aqueles cachorros agressivos. Eu o ignoro. Irritado, o guarda vem em passos largos na minha direção. Sem muita pressa, ele avança com um enorme bastão, que provavelmente usa pra bater nos bichos mal comportados. Seguindo adiante, penso que talvez eu seja um deles… mas esse cara não vai me bater. Dessa vez, ele não vai bater em ninguém.

- Hã!? Você tá maluco!?!?

Ele para de andar imediatamente. Em seu rosto, uma expressão confusa e desesperada de horror. No meu, um sorriso alegre. Enquanto isso, no rosto do tigre, um rugido gutural…

- Espera!!! Pelo amor de Deus, você não vai abrir essa coisa!!

Abro a tranca. Puxo a porta pesada da jaula. 

O tigre me ignora por completo, com seus olhos selvagens fixados no rosto assombrado daquele homem. Suas pernas trêmulas dão alguns passos pra trás, enquanto as grandes patas do tigre avançam calmamente adiante. Ronronando, o grande animal abaixa, alaranjado.

- Calma, calma aí, tigrão…

Não dura um segundo. Num salto rápido e silencioso, a criatura abocanha o rosto daquele homem. Ele grita e esperneia desesperadamente enquanto aquelas grossas patas pesadas o esmagam contra chão. Os cachorros latem mais do que nunca. Os dentes grossos e afiados do tigre mergulham naquele rosto, e começam a puxá-lo pra cima e pra baixo e pra um lado e pro outro. Com os lábios molhados de sangue, o tigre sacode a cabeça do homem até arrancá-la de seu pescoço. Um jorro de sangue é lançado sobre os cachorros que se afastam e continuam latindo sem ousar atacar. O tigre ruge para espantá-los. Deita em seguida. Entre suas mãos, uma bola carne, cabelo e sangue. Deitado do lado do corpo sem cabeça, ele começa a roer aquela cara ensaguentada, como se fosse um brinquedo, aos poucos rasgando a pele e a carne e expondo o crânio amarelado do falecido guarda. O elefante, sentado ao meu lado, observa tudo.

- Vamos lá - eu digo. - Vamos abrir as outras.

A plateia aplaude de pé a apresentação de uma dupla de palhaços que as crianças adoraram. 

- Bravo!!! Bravo!!!

Soam tambores e trompetes, e acima dos palhaços, uma série de malabaristas se penduram e saltam pra lá e pra cá com seus maiôs brancos. Os palhaços, com um sorriso sincero, agradecem à plateia. Uma série de enfeites cintilantes chove sobre todos. De repente, a calça de um dos palhaços despenca, e as crianças estão às gargalhadas quando um leão invade o palco calmamente. Encarando a audiência, ele ruge. A música é interrompida e há um estranho momento de silêncio. Ninguém entende se aquilo era o próximo ato ou um terrível acidente.

E então: splat. Alguém perdeu a concentração. Muitos metros acima, um jovem malabarista não consegue segurar onde devia. Depois de duas voltas no ar, o rapaz mergulha contra o chão duro e levanta uma mórbida fumaça de terra. As pessoas se dão conta: nada daquilo devia estar acontecendo.

Ninguém reage. Com um cadáver contorcido de um lado e um leão solto do outro, os palhaços sentem um frio na espinha e não ousam se mover. A plateia nem pensa em gritar. Pra quebrar o absoluto silêncio, apenas as patas pesadas do leão e o pequeno choro distante de um bebê que havia se assustado com as palmas anteriores. 

O leão se interessa. Avança sobre o cadáver torto e largado no chão, dando nele alguns tapas curiosos e farejando. Silenciosamente, algumas pessoas choram na arquibancada. Um dos palhaços está mijando nas calças nesse exato momento, mas ninguém parece achar graça dessa vez.

- Um… dois… três…

O leão está farejando aquela massa empoeirada de ossos quebrados quando uma música ensurdecedora começa a tocar sem mais nem menos. Tompetes, tambores, apitos! Tocada ao vivo, uma típica música circense. O pobre leão leva um enorme susto e deixa o cadáver de lado, rugindo inquieto pra lá e pra cá. Ao seu lado, duas coisas explodem e começam a soltar faíscas aterrorizantes. Acuado, o bicho anda rosnando de um lado pro outro, sem saber o que fazer.

- Ei, ei, ei!!!

Um forte estalo levanta poeira do chão. Devidamente fantasiado, um domador entra em cena com um chicote na mão. Splat! Outro estalo no chão e o leão ruge assustado pro homem.

- Pode ficar calmo, gatinho… vai se acalmando...

Todos estão com os olhos arregalados quando um grupo de homens de preto arrasta uma enorme jaula pra cena. O leão a observa, irritado.

- Vem, vem, entra aí…

Com um sorriso suado lhe escorrendo a maquiagem pelo rosto, o homem ordena:

- Entra!!!

Ele chicoteia o chão novamente e o leão, resmungando, entra obediente em sua jaula grande e metálica. Uma onda morna de alívio se espalha pelo corpo de todos. Emocionados e sem fôlego, todos começam a levantar na arquibancada. Os olhos úmidos. O leão preso.

- GRAÇAS A DEUS!!!

- PUTA QUE ME PARIU!!!

Todos aplaudem e gritam loucamente. Casais abraçam seus filhos e os palhaços ajoelham no chão ainda trêmulos. O domador sorri. Paramédicos surgem correndo para resgatar aquele corpo deformado e sujo de terra. Há um confortável alvoroço e o chão começa a tremer. Algumas pessoas percebem… parece um exército. Parece que mil cavalos se aproximam.

Mas é o elefante.

- O que está acontecendo…?

O domador vira seu rosto suado e uma enorme pata mergulha em seu tórax.

Fruuumm!

O elefante soa sua tromba com ódio bobeando em seu enorme coração. Dentro do domador, tudo estoura. Suas costelas quebram e a pele arrebenta. Uma gosma vermelha sobe por suas entranhas esmagadas e jorra pra fora de sua boca numa espécie grossa de vômito ensanquetado.

- VAMOS SAIR DAQUI!!!

Um homem dá a mão aos seus dois filhos e começa a descer a arquibancada. Sua mulher segue atrás. Outras pessoas pensam em fugir, mas muitas ficam paradas ou circulam confusas de um lado pro outro sem saber o que fazer.

Fruuumm!

O elefante ruge novamente e levanta as patas da frente no ar. Uma delas, molhada de sangue. Ali embaixo, o domador está dividido em duas pernas, dois braços e uma cabeça. Seu tronco, agora, não passa de tripas e ossos estrelaçados. O elefante abaixa a cabeça. Dessa vez, não é de medo. Ele apenas dá uma forte cabeçada na jaula do leão. 

- Sai daí, sai daí!

Ali dentro, o bicho rosna assustado. A jaula vira: cai sobre um homem de roupas pretas, da produção, que não consegue correr a tempo. Sufocado com o peso do negócio, ele começa a tossir sangue por entre as grades da jaula. Ouvindo aquela tosse e observando aqueles braços confusos invadirem sua casa, o leão se interessa...

- Por aqui!

A banda larga seus instrumentos e começa a correr pra saída dos fundos. Preso em sua jaula, enquanto isso, o leão arranha o homem preso ali embaixo, como se cavasse um buraco por entre as barras da grade. A blusa preta do homem rasga, e logo sua pele e seus músculos. Curioso, o grande animal começa a lamber o sangue do infeliz. O elefante, furioso, está correndo em direção à arquibancada.

- Ele vai derrubar tudo!!! Vai cair tudo!!!

A elefante cabeceia a arquibancada como uma bola de boliche rolando sobre pinos. Pessoas saltam pra fora do caminho e outras são esmagadas contra as próprias cadeiras de plátisco. Insatisfeito, o animal ergue a cabeça violentamente e é possível ver duas ou três pessoas voando metros acima. Uma delas cai e quebra as costas em algumas cadeiras. Outra bate num holofote e cai de cabeça no chão. No mesmo segundo, o holofote estoura ao lado soltando faíscas. Todos estão correndo desesperadamente, mas o elefante começa a escalar a arquibancada e destruí-la. Revoltado, ele usa sua forte tromba pra empurrar as pessoas pra fora de seu caminho, dando nelas fortes pancadas que as arremessam pra todo lado. Algumas pessoas caem pra fora da arquibancada, lá embaixo, enquanto outras saltam de propósito pra salvar suas vidas...

Fruuumm!

Vários corpos feridos rastejam com seus membros quebrados, enquanto outros correm desviando de seus corpos e puxando os filhos pelas mãos. Perdidas no meio de tudo, algumas crianças choram enquanto assistem aquelas pessoas serem cabeceadas, lançadas no ar ou esmagadas pelas patas cinzas e gigantestas que escalam aquela estrutura com violência. O elefante está subindo e balançando a cabeça para todos os lados quando todo mundo começa a perder o equilíbrio.

- Vai virar! Vai virar!!!

Parafusos escapam. A coisa toda começa a entrar em colapso e uma massa de pessoas sangrando parece ser sugada pra um buraco negro. O elefante escapa, e uma série de barras de ferro começa a entortar e virar pra uma mesma direção. Arrastadas pro olho do furacão, as pessoas gritam e se seguram no que podem. Mas não adianta. Tudo começa a virar, pessoas vivas e quebradas começam a rolar umas sobre as outras e logo aquele grande rombo começa a se encher de entulho, corpos e pedaços distorcidos de ferro. Tudo vira destroços e pernas e braços quebrados. Uma fumaça de poeira começa a se levantar e todos da outra arquibancada estão correndo na direção da grande saída do circo. Há dezenas de mortos naquele emaranhado de sangue e ferro. 

Extremamente irritado com as pequenas formigas que fugiam, o elefante avança, cabeceando e pisoteando pra todos os lados. Gritam e correm como se não houvesse amanhã. E pra muitas daquelas pessoas, não há. Em uma única daquelas grandes pisadas, o elefante conseguia esmagar os ossos de duas pessoas ao mesmo tempo contra o chão. Um homem adulto e sua filha se abraçam com força quando aquela pata enorme mergulha sobre os dois, entrelaçando suas entranhas em uma única massa vermelha e molhada de ossos cuzados. Crânios estalam, se rompem, e miolos grudam nas patas da besta cinzenta que ruge pra todo lado. Ali no palco, está havendo um massacre.

- Calma, gatinho… calma…

A banda corria pra fora do circo quando foi rendida por um enorme gato laranja. Era o pacato tigre, explorando sua liberdade. 

Todos param imediatamente sem ousar correr pra frente ou pra trás. Encarando-os, curioso, o animal ruge com o rosto ensanguentado e um bafo de morte…

- Silêncio, façam silêncio - murmura um homem negro.

A banda inteira obedece e se mantém paralizada. O tigre se aproxima com calma e um olhar misterioso. Ninguém sabe o que ele está tramando quando ele começa a se esgueirar por entre as pessoas. É possível sentir o calor da carne do animal, assim como sua respiração pesada, a maciez de seus pêlos. 

Apertando os olhos num silencioso pânico, uma moça sentiu aqueles grossos pelos quentes rastejarem pelo seu braço direito. Em seguida, o tigre esbarra no negro, tirando dele o equilíbrio. O homem dá um passo pro lado e se mantém de pé, firme, tentando manter-se o mais discreto possível. Muitos estão ofegantes, chorando, enquanto o tigre caminha e fareja as pessoas de forma terrivelmente ameaçadora…

Uma outra moça está aos prantos, trêmula, tossindo e soluçando… mas o tigre a ignora e se interessa por um trompetista de cabelos compridos. O animal o fareja por uns instantes e logo estica seu braço laranja, dando um forte tapa na cabeça do rapaz. Ele cai no chão, quase nocauteado, e o tigre parece mordê-lo calmamente no ombro, sem sequer abrir um corte com seus dentes afiados. Estava apenas curioso. O rapaz já não parecia mais consciente. Do outro lado do grupo, a moça continua a chorar, tentando se manter imóvel…

- Fica calma, fica calma - diz o negro. - A gente não é comida, é como um brinquedo…

O rapaz de cabelos compridos, confuso, começa a se levantar. Ele não parece entender exatamente o que estava havendo, e antes que o fizesse, leva uma forte mordida afiada nas costelas. Com aquela abocanhada suculenta, o tigre arranca um dos pulmões do rapaz, que cai de volta morto no chão. A banda inteira treme, com o rosto molhado de suor e lágrimas. Não ousam correr, não ousam se mexer além de seus espasmos involuntários de pânico… A moça que chorava, porém, perde as esperanças. 

- Não - murmura o negro.

A moça começa a correr o mais rápido que pode. O tigre vira-se pra ela. Sem pressa, ele larga o trompetista ensaguentado e caminha em direção a ela. Olha pra trás e o tigre rosna incomodado. A moça logo avista uma escada de ferro para os equipamentos de iluminação… Era sua chance. Ela avança na coisa e começa a subir o mais rápido que pode...

O tigre compreende. Percebendo que a presa logo estaria fora de alcance, ele imediatamente começa a correr. O resto da banda aproveita pra fugir pro outro lado. A moça já está na metade da escada quando o tigre dá um enorme salto em sua direção, esticando seu braço e suas garras até poucos centímetros daquela perna magra. Ele não a alcança. Extremamente irritado, ele começa a rugir e andar pra lá e pra cá enquanto olha pra cima e encara a presa fugitica. De repente, um pequeno rosto preto e peludo. A moça se assusta, e a coisa salta em sua cara, puxando seus cabelos e socando sua cabeça.

- Ahhhh!! - o chimapzé grita. - Ahhhh!! Ahhhh!!

Suas mãos soltam a escada e ela tomba pra trás, metros abaixo. Quando o tigre avança sobre ela, o macaco foge escada acima para seus colegas, que brincam e se penduram pelos equipamentos de luz do circo.

- Meu Deus, todos os bichos estão soltos… estão todos soltos…

Com ajuda de sua namorada, um rapaz tenta correr com a perna quebrada e um osso saltando pra fora. O elefante está longe, mais calmo, explorando o resto do circo. O tigre enquanto isso, arranha e mordisca a moça caída no chão - seus cabelos loiros agora ruivos. Ela ainda estava viva quando ele arrancou um de seus braços com a força dos dentes. E irritado, o leão dá cabeçadas na porta de sua jaula tombada e amassada. O indivíduo esmagado ali embaixo, nesse momento, já mais parece um esqueleto vermelho, corroído até a morte.

- Mãe, mãe!!! Um avestruz!!!

Três grandes avestruzes caminham como perigosos dinossauros, circulando por entre as pessoas que correm e mancam pelo pátio repleto de jaulas abertas e caixotes e aparatos multicoloridos. O sol é forte ali fora. Um dos avestruzes, irritado, dá fortes bicadas nas costas de um velho, que cai no chão e se encolhe, logo ajudado pelos que passam…

Os avestruzes, afinal, não são um grande problema. E tudo que os camelos fazem é cuspir no rosto das pessoas, irritadiços. 

O elefante está mais calmo, e os felinos carnívoros não parecem estar por perto. Com esperança, todos caminham na terra em direção às roletas. Passando por ali, estariam livres. O local era cercado, e nenhum animal era pequeno o suficiente pra passar pelas roletas e detectores de metal na entrada. Mais alguns metros até lá… e todos estariam a salvo. 

Mas é aí que o chão começa a tremer novamente. Aquele terrível som de um exército medieval se aproximando. Dessa vez, não é o elefante.

- VOLTEM, VOLTEM!!! - alguém grita. - OS CAVALOS!!!

As pessoas começam a dar meia volta e correr de novo pra dentro do circo. Não adianta. Oitos cavalos grandes e fortes levantam poeira do chão enquanto derrubam e pisoteiam todos que encontram pela frente. Em meio àquele amplo grupo de pessoas, os cavalos param de avançar e relincham com as patas levantadas. Confusos e estressados, começam a saltar como loucos, lançando coices e chutes pra todos os lados.

O casco grosso e metálico de um deles estoura contra o rosto de uma criança. A forte perna traseira de outro golpeia o peito da namorada do rapaz que mancava. Logo depois, outro casco violento o ataca na parte de trás da cabeça. Assustados, os avestruzes correm. Ninguém grita. Em meio àquela perturbadora orquestra de cascos pesados e fumaça marrom, as pessoas apenas tossem e rastejam com ossos quebrados e os olhos apertados. Ferraduras estourando contra dentes quebrados. Não é possível ver muita coisa além de vultos gemendo e golpes agressivos. Deitada no chão em meio a fumaça e cascos e corpos, uma mulher chora ao segurar o rosto desfigurado de sua filha, com os dentes enfiados no próprio rosto e o maxilar corrompido. A língua solta escorregada pra fora, e o sangue escorrendo.

Os cavalos sossegam, arfando, e a poeira começa a baixar. Ainda inquietos, eles andam pra lá e pra cá, pisando nos corpos mortos e quebrados que se espalham sujos pelo chão. Algumas pessoas ainda estão vivas, tossindo sangue e rastejando pra longe dali… usam suas últimas forças em direção às roletas.

A banda chega ali a tempo de assistir aquele bruto massacre. Ainda assim, após uma pequena pausa, eles decidem: preferem os cavalos ao tigre assassino.

- Por aqui, por aqui…

Os cavalos começam a se dispersar. Com cuidado, a banda os observa, caminhando lentamente por entre eles.

- Que horror…

Eles desviam de cadáveres e corpos moribundos, contorcidos pelo chão, sujos de sangue e terra. Alguns erguem os braços pedindo ajuda, outros deitam encarando o céu com olhos delirantes, com a cabeça amassada e sangue nos pulmões. Entre os olhares vazios e caras paradas, a banda escuta choros e gemidos de pessoas ainda com vida… mas não ousa ajudar ninguém. Um tigre podia estar se aproximando. E quando passaram por lá, a jaula do leão estava aberta. Vazia.

- Vamos sair logo daqui…

- Olha aquilo.

A muitos metros dali, em cima de altos caixotes, alguém com um longo rifle de madeira. Estranhando meu moicano, eles acenam.

- Ei!!! Você!!!

A banda anda em minha direção, e eu mantenho a mira na direção deles. Eles ficam confusos, mas logo compreendem:

- Merda, atrás da gente.

Com a juba manchada de vermelho, o leão caminha atrás deles. Entre seus dentes, o fino pescoço rasgado de um avestruz. O resto do corpo da ave rasteja pelo chão como um pincel, deixando um rastro de sangue conforme o bicho se aproxima.

- Atira nele, atira nele!!!

Um rapaz começa a gritar.

- Cala a boca, ele vai, ele vai - responde o negro, assustado.

- Merda, merda… o tigre também…

O homem olha pra trás, e um tigre ensaguentado se aproxima. O leão larga o avestruz e os dois animais se farejam com curiosidade.

- Nem pensem em correr - sussurro pra mim mesmo.

A banda fica parada ali no meio. Seis míseros sobreviventes. A alguns metros das roletas… alguns metros dos felinos… e muitos metros de mim e meu rifle.

- Por que ele não atira…?

Os animais circulam um em volta do outro, se farejando. Observo-os pela mira da arma. O rapaz começa a acenar com os braços. Uma percussionista loira sussurra.

- Pare com isso…! Não chama a atenção!

Os felinos os ignoram, mas pouco depois se desinteressam um pelo outro e começam andar na direção do grupo. Os animais se entreolham por um momento, e logo começam a aumentar a velocidade com planos em mente.

- Atira!!! - alguém da banda grita.

- Calma - eu digo.

- Socorro!!! Atira neles!!!

As duas feras estão correndo. A banda perde as esperanças e começa a correr. O tigre pula num deles. O leão salta em outro, que agarra instintivamente na perna da loira e a faz cair também. Faço meu primeiro disparo. Agora.

BANG!!!

Eu erro. A arma é complicada, demoro alguns intantes até colocar outro dardo envenenado. Os bichos ignoram o barulho do tiro. Enquanto isso, o leão se adianta com sua presa que veio de brinde, mordendo-a na garganta e deixando-a sangrar. O tigre, por sua vez, delicia-se com os intestinos de sua vítima. O idiota que matou a loira, morre em seguida com o cérebro perfurado pelos grossos dentes do leão…

- Merda - resmungo.

Os outros três não dizem nada, correndo desesperadamente em direção às roletas. Aqueles monstros eram grandes demais, não conseguiriam passar por ali. Mais alguns passos rápidos e estariam saltando pelas roletas em direção à sagrada sobrevivência. Do lado de fora, não havia ninguém. Apenas um enorme estacionamento.

BANG!!!

Disparo. Com o dardo na coxa, o animal tomba no chão quase que imediatamente. Seus amigos viram assustados.

- O quê!?!?

Era o negro. O homem espuma pela boca.

- Ele tá atirando na gente!!!

Intrigados com o barulho, os felinos largam seus brinquedos ensaguentados e começam a vir em minha direção. Mas não é em mim que estão interessados.

- Corre, corre! As roletas!

Os dois animais correm. E aqueles dois últimos pequenos e magros humanos finalmente chegam às roletas. Antes delas, porém, um último desafio: uma série de correntinhas organizando o caminho pra uma longa fila. Um deles chega na frente, saltando tudo com facilidade. Mas não adianta. Num reflexo estúpido, ele tenta passar por uma roleta que o segura num solavanco. 

- Merda.

- Por cima! - o outro grita, correndo logo atrás. - Pula por cima!

Não há tempo. O leão pula com as garras em suas costas. E logo atrás, o tigre. O último sobrevivente pula a última corrente e prepara-se pro seu pulo final por cima da pequena roleta que o separava da vida. 

O tigre não está perto o suficiente, mas um tiro forte e perfurante o acerta na cabeça. É um dardo. O homem cai pra trás e começa a ter uma espécie de convulsão. Arrepiado e confuso com aquele corpo vibrante, o tigre se irrita e começa a estapear aquilo com suas garras afiadas.

Lá de longe, recarrego a arma, orgulhoso. E de repente, uma centena de fogos de artifício começa a explodir dentro e fora do circo.

- É isso aí.

Não havia momento melhor pro grandalhão esbarrar em alguma coisa lá dentro e ativar os fogos. Largo o rifle e assisto ao espetáculo. Assustado, o elefante corre pra fora. A gigantesca lona do circo logo está em chamas. Um cavalo do apocalipse sai dali de dentro pegando fogo. Carros de polícia e ambulâncias finalmente tomam o enorme estacionamento. Há centenas de mortos pisoteados e despedaçados e contorcidos por toda parte. Estou às gargalhadas quando o elefante se aproxima.

- Nós conseguimos! - eu grito. - Nós conseguimos!

O enorme animal derruba a grade e começa a pisotear os carros de polícia. Observando a oportunidade, o tigre e o leão escapam.

Um comentário:

Math. Saboya disse...

Curti o elefante pós-mijo.