quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Reformulando a Arte e a Literatura

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, em 1945, traçou algumas relações pertinentes sobre a noção de cinema e a nova psicologia. Seu argumento era que, assim como a percepção humana prova-se cada vez mais uma totalidade unificada (mais do que a soma dos sentidos), o cinema também configura e deve ser visto como uma totalidade única, e não a mera justaposição de som, imagem, movimento e artes cênicas. Expandindo esse conceito um passo adiante, eu argumento: da mesma forma, funciona o conceito geral de Arte. 

A noção do que é arte não se basta como a mera soma de suas partes ou categorias, como um aglomerado de modalidades artísticas. A visão, a audição, o tato, o alfato e o paladar são apenas fragmentos da nossa experiência maior de perceber o ambiente ao nosso redor em uma totalidade experiencial. Seguindo a analogia: as manifestações artísticas em suas diversas formas são também os fragmentos que compõem um organismo maior. Um organismo maior e mais complexo do que a mera justaposição de partes (cinema, literatura, música e todas as outras), um organismo que se basta como uma entidade total: a noção mais ampla e completa de Arte, em todas as suas aparentes formas superficialmente distintas.


Por muito tempo, a Literatura se prestou a estudar os movimentos da arte como um todo. De certa forma, tradicionalmente, a Literatura tomou uma postura interdisciplinar, adotando os estudos de teatro (afinal, Shakespeare, ícone da literatura inglesa, fazia livros ou peças de teatro? e as comédias e tragédias gregas, eram lidas ou assistidas?) e misturando até pintura, artes plásticas, arquitetura e interpretação musical entre seus assuntos. Ao delinear os movimentos literários de sua própria disciplina, a Literatura tomou outros campos emprestados e formou uma concepção maior de arte que justificasse as oscilações de forma e conteúdo em obras literárias em diferentes épocas e contextos. De certa forma, a Literatura foi além da métrica, interpretação e narratologia, expandindo-se por noções mais amplas de ficção, estética, e no final desenvolvendo uma tradição de perceber e interpretar um "contexto artístico" unificado, como um todo.

O historiador da arte Arnold Hauser, por exemplo, faz um trabalho extraordinário numa obra interessantemente intitulada "História Social da Literatura e da Arte" (1951). Nesse projeto ambicioso, Hauser cobre nada menos do que a explicação social histórica para todos os movimentos artísticos desde a pré-história até metade do século 20 depois de Cristo, numa fascinante cadeia de eventos em ordem cronológica. Hauser, então, faz seus estudos de forma extremamente interdisciplinar e unificada, mas não é à toa que seu título faz uma menção especial à literatura: por todo esse tempo, a Literatura foi a área da arte que mais pareceu expressar a cultura de um tempo e espaço. No entanto, precisamente na época que o trabalho de Hauser é concluído (afinal, ele chegara ao presente de seu tempo!), outras formas parecem ultrapassar a literatura em termos de expressividade de um zeitgeist. Curiosamente, com mais um título pertinente, a última parte da enorme obra de Hauser se chama: "A Era do Filme" - não podia terminar de forma mais simbólica.

No entanto, é claro que não se trata do fim da Literatura. Mas é extremamente importante reconhecer que, na modernidade, outras formas de arte tornam-se predominantes como forma de expressão cultural - não mais a literatura, a pintura, a arquitetura e o teatro. As gerações seguintes não só consomem, como se expressam sob outros moldes - e a arte que os jovens produzem ou sonham produzir se expande cada vez mais às áreas além da literatura tradicional, conforme poderosas mudanças sociais e técnicas atingem a música e o cinema dos anos 1960 em diante. 

Sendo assim, com essa crescente perda de relevância popular em suas áreas mais consagradas, os estudos literários parecem perder o controle dos movimentos artísticos depois do modernismo. Quem são os grandes nomes da literatura contemporânea? É claro que o estudo do presente, sem distanciamento histórico, é difícil e ousado. Mas responder quais são os grandes nomes da música e do cinema na atualidade é, para acadêmicos ou não, uma tarefa muitíssimo mais fácil e quase intuitiva (da mesma forma como devia ser, antigamente, citar autores relevantes de seu tempo). Como consequência, o estudo dos movimentos artísticos parece se reduzir ao histórico, ao passado, enquanto o desafio do contemporâneo permanece quase intocado. E a arte, em suas outras formas, dispara em seus diversos sentidos em pleno abandono, sem que ninguém a acompanhe de perto - conforme sempre havia feito a Literatura que parece ter ficado, sem fôlego, atrás.

O exemplo mais explícito desse surpreendente descaso artístico está na recente arte do videogame, com suas narrativas e experiências interativas. Desde os seus primórdios nos anos 1980, o videogame evoluiu e se proliferou como uma nova espécie animal que domina o planeta - mas que, ainda assim, numa absurda negligência científica, segue completamente ignorada por biólogos. 

O cinema e música, embora não tenham a mesma tradição acadêmica/artística da literatura, acabaram por conquistar suas próprias disciplinas. Mas o videogame, atingindo agora um ponto crítico em seu desenvolvimento, ainda não possui nenhum campo próprio de estudos. O videogame é, no máximo, tratado como uma questão de qualidade técnica, abordada em áreas de computação e programação. Da mesma forma, num limbo entre as artes visuais e literatura, a arte dos quadrinhos vive uma similar história de décadas de negligência, coberta talvez apenas pelo jornalismo ou estudiosos independentes.

Enfim, eis o grave sintoma de um problema maior: a falta de estudo e teorias sobre a arte do videogame é uma evidência clara de que, desde a modernidade, não há nenhuma disciplina que se preste a estudar as expressões artísticas como um todo. A literatura, que antes se dedicava a estudar não apenas a arte das palavras mas a própria noção mais ampla de "ficção" ou "artes narrativas"(metendo-se em artes sequer diretamente fictícias ou narrativas, como arquitetura), agora deixa o cinema e o videogame vagarem desacompanhados, quase que com aquela irresponsabilidade de um biólogo que ignora uma nova espécie. Numa atitude conservadora, a Literatura se apega ao passado e mal percebe a importância do presente. 

A solução ideal para uma abordagem científica da "arte com um todo", possivelmente, consistiria na consagração de uma disciplina completamente nova, intrinsicamente interdisciplinar, mas com um ambiente acadêmico próprio. No entanto, na situação atual, a desconexão entre disciplinas e a negliência com certas artes acabam tornando a questão urgente o suficiente para exigir a ação de uma espécie de força-tarefa da Literatura. Em nome da recuperação dos movimentos e princípios artísticos no contemporâneo, o campo da Literatura não só PODE como talvez DEVA (por ser talvez o mais amplo e capaz) se reerguer para tomar as rédeas do estudo e interpretação da arte na contemporaneidade. E isso é tão importante cientificamente quanto culturalmente.

Parece existir, ultimamente, uma impressão popular geral de que a literatura vive uma situação de decadência: as pessoas leem menos ou apenas consomem livros populares, os estudos literários parecem atrasados e desinteressantes, a noção de literatura parece demasiadamente difícil ou refinada a ponto de manter o público afastado. Graças à popularização do cinema, quadrinhos e jogos de videogame (aliados à negligência dos estudos da arte e literatura), jovens parecem cada vez mais PENSAREM que não gostam de literatura. Enquanto, na verdade, o que mais fazem é consumir histórias diariamente, sob a ilusão de que não gostam de literatura!

No final das contas, ao conceber uma arte unificada e ao reconhecer e aceitar a predominância de novas formas artísticas, a Literatura precisa sair de sua falsa posição de abandono e usar o novo para se reerguer. Ao se dar conta da própria liderança no estudo das variadas artes narrativas, a Literatura precisa deixar claro que não apenas sempre existiu, como sempre vai existir - não apenas como forma independente, como através de todas as outras.


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