sexta-feira, 7 de março de 2014

Zona Industrial

Poderia ser o Século 19. Mas o ano é 2025 e uma chuva pesada e morna desaba sobre uma enorme fábrica naquela noite escura. São duas horas da manhã. Relâmpagos pálidos iluminam brevemente as gotas grossas que mergulham barulhentas. Os morcegos se escondem pendurados em suas palmeiras. Porcos sujos resmungam amontoados em algum lugar - a água escorre pelo teto de madeira, enquanto o chão e o lixo e a comida e a bosta se misturam numa única lama densa. O trovão ruge com calma por cima de todos e uma criança chora em algum lugar. O que fariam as formigas, afogadas? Na pesada calma da madrugada, a fábrica se ergue mecânica, solitária e cinzenta, sem nunca parar de trabalhar.

Lá dentro, o ruído ensurdecedor da maquinaria. O ECO DAS CORRENTES E ENGRENAGENS COMPETINDO COM AS VIOLENTAS PANCADAS DE CHUVA NO TELHADO METÁLICO. Há uma cidade vazia ali ao lado, abandonada em silêncio, com seus barracos e vielas por onde coisas escuras rastejam desesperançosas sobre a água. Do lado da fábrica, diante de uma enorme porta acorrentada, um único homem molhado carrega uma lanterna e uma pistola enquanto espera algo acontecer.



HÁ UMA GRITARIA HORRÍVEL E DESESPERADA COMO SE MILHARES DE PESSOAS ESTIVESSEM MORRENDO. Braços escuros e imundos se amontoam apressados sobre um corpo molhado em vermelho, um corpo sendo devorado por uma máquina enferrujada, dura e insistente, que não consegue parar de girar e dar risada. Dentes podres e amarelados num rosto contorcido, a carne rasgada e ensanguentada enrolando-se em farrapos pra dentro daquilo. Respingos de sangue borrifam por toda parte, e centenas de braços desesperados e escorregadios tentam puxá-lo na gritaria de uma língua estranha - há ao fundo os baques de ossos quebrando.

Há uma legião de corpos sujos e atarefados, vultos escuros e músculos cansados. Ontem o sacrifício à máquina havia sido o de mulher, cujo cabelo mal preso e um breve cochilo foi o motivo para o despertar de um pesadelo apenas para acordar em outro - e logo depois voltar a dormir com o estalo de um crânio magro e frágil por trás de um couro cabeludo amassado. Alguém precisava fazer algo. O corpo é arrastado pro canto, alguém preenche seu lugar. As máquinas continuam. Aqueles amontoados de corpos sem rosto e olhos apertados fermentam num ritmo caótico e incompreensível - pessoas nunca saem, pessoas nunca voltam. Apenas borbulham, brotam, desaparecem, morrem. São puxadas, consumidas, assimiladas nas entranhas da fábrica. Há uma violência em todas as coisas. As pessoas somem - há apenas uma massa humana com milhares de braços.

A chuva agora parece mais fraca - um vira-lata se aventura circulando por entre os sacos de lixo que bóiam. Um morcego gruda num porco, bebendo seu sangue enquanto ele dorme mais calmo. Há símbolos estranhos em alguns lugares, e breves conversas entre homens uniformizados em lugares distantes. Eles aguardam, bebem café. Houve um estalo durante a noite: algo estourou, soltando faíscas. Um homem foi eletrocutado, lançado no ar em chamas, apenas pra cair escuro e fumegante na lama. Estava vivo, ofegante, os olhos arregalados e o coração disparado. Uma caminhonete se aproxima, e sujeitos de luvas e capacete correm para o socorro da máquina quebrada. Estava tudo escuro na fábrica - as pessoas gritavam, aterrorizadas. Alguém entrava pra bater nelas, gritando coisas estranhas, mirando sua pistola. Alguém tentou sair, foi baleado. A luz voltava minutos depois - havia no chão um corpo ensanguentado.

O que eu quero dizer é que havia uma opressão macabra naquela região atrasada. Algum tipo de governo agressivo, velho e enferrujado, cujos irresistíveis poderes sobre a indústria subiu-lhes a cabeça e geraram um silenciado ambiente clandestino e reprimido de pânico. Um calabouço secreto em um reino falsamente pacífico. Ou então, talvez fosse tudo fruto de tentáculos  maiores foragidos naquelas terras exóticas - frutos do descaso e indiferença de um distante império de sorrisos e dinheiro do outro lado do oceano. O mercado é uma selva imunda de lixo tóxico. No escuro debaixo da chuva, aquelas pessoas eram a massa mais rentável para levar produtos a famílias que viviam nesse instante um dia ensolarado do outro lado do mundo.

Fosse como fosse - eram todos homens. Com seus uniformes diferentes e ternos parecidos, com seus banquetes e documentos e cadeiras de couro. Canetas, cartões, poltronas e metralhadoras. Fosse qual fosse o nome que davam a si mesmos, ou com os quais acusavam seus inimigos… uma coisa era certa - eles também não podiam parar. O morcego voa para seus filhotes - vomita em suas boquinhas o sangue morno. Os porcos acordam assustados, brigando. Num ruído grave e monstruoso, os humanos são sugados para dentro da máquina gritando. Um soldado bate em uma mulher com a arma, e um homem é assaltado quando volta do trabalho.

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