quarta-feira, 7 de agosto de 2013

6017: Mordingrad

(Trecho do Projeto "6017")


Era uma noite morna quando eles chegaram em Mordingrad. Do lado de fora, um vento quente circulava por entre as casas e barracos. Os finos fios elétricos balançavam, carregando suas pequenas lâmpadas amareladas que piscavam ocasionalmente em estalos surdos. Vira-latas magros reviravam os sacos de lixo. A noite não tinha estrelas, as árvores fracas não se agitavam com o vento. Nas ruas escuras da cidade, escutava-se apenas o ruído distante de um rádio ou uma televisão em algum lugar - uma gargalhada algumas ruas adiante, e a música enclausurada pelas paredes de um bar agitado naquela noite monótona.

Lá dentro estava mais quente. A música tocava mais alto. Alguma banda de rock ou sei lá, que consistia apenas em duas pessoas - um cara na guitarra e outro numa bateria incompleta, faltando umas partes. O cara da guitarra cantava num microfone remendado com fita adesiva e ninguém prestava atenção. Conversavam alto, jogavam jogos, fumavam todo tipo de coisa e bebiam risonhos. Havia uma fumaça mista naquele lugar, mágica e inebriante, que parecia deixar qualquer um vagamente entorpecido...

Eram pessoas de todo tipo. Pessoas que se odiavam, inclusive, mas que viviam um consenso calado de que estavam lá para esquecer seus demônios. Grupos racistas, violentos, idealistas políticos... anarquistas revoltosos e religiosos abstêmios. Três caras haviam esfaqueado um adolescente gay no mês passado, agora recusavam educadamente as ofertas de um garoto de programa. Enquanto isso, putas baratas sentam no colo de seus clientes bêbados, que na verdade as odeiam por terem a pele mais escura do que a deles. Há um pseudo-redpeito. Um subentendido cessar-fogo de intolerâncias. Numa movimentada cidade de fronteira a sul do Império, viajantes e estrangeiros eram obrigados a conviver com as suas mais estúpidas diferenças imaginárias.

Do lado da porta, um homem de orelhas pontudas observa tudo com uma metralhadora velha nos braços. Entediado e sonolento, ele funciona ao mesmo tempo como segurança e traficante daquele precários estabelecimento. Um duende, com dificuldade, atende os bêbados em um balcão mais alto do que a sua própria cabeça, tendo a ajuda de um auxiliar desproporcionalmente comprido, com o rosto torto e um olhar retardado.

Era estranho e surreal estar ali naquele antro de embriaguez, morna e barulhenta, de ódios reprimidos e ignorados. Bebia apenas uma cerveja quente no balcão, de costas pras mesas, encarando as garrafas vazias de bebidas alcoólicas de melhor qualidade que talvez um dia já tivessem sido vendidas por lá. Mas provavelmente não, e eram apenas colecionadas e postas em exibição por aquele duende de braços peludos, que tinha uma espingarda encostada num canto e provavelmente era o dono do local há mais de 50 anos. Era ridículo pensar que aquelas garrafas chiques e empoeiradas na verdade tinham sido encontradas no lixo, e que nunca bebida parecida jamais havia sido vendida naquele boteco de merda. Ali nunca houve "tempos de prosperidade" ou qualquer coisa assim. É claro que ali sempre foi um lugarzinho fodido. Chego a sorrir em meus pensamentos com a piada na minha frente, e estou pensando em tudo isso quando escuto um alvoroço estranho pelas minhas costas. Como ia dizendo, eram eles. Eles haviam chegado.


- Boa noite, boa noite...


Com seus uniformes fascistas, lá estavam aqueles demônios sorridentes. Vampiros, pálidos, de jaquetas limpas e aquele emblema odioso no braço esquerdo. Na frente deles, três brutamontes invadem o local com seus coletes e coturnos e fuzis de aço brilhante. Orcs, mercenários, de cabeça raspada e cicatrizes na cara em suas aparências óbvias. Cachorros do Império, vendidos e estúpidos, fazendo a escolta daquele casal de fascistas alegres e arrogantes - divertindo-se com o safári entre as pessoas pobres e imundas em quem eles pisam com suas botas engraxadas.

- Vamos - diz o rapaz, jovem, de caninos brancos e afiados. - Continuem com a música.

Os dois caras da banda, atordoados, haviam parado por um instante. Noto por um momento que o baterista era um anão barbudo com uma tatuagem anti-fascista no braço. Voltam a tocar mecanicamente e algumas pessoas tentam retornar às suas conversas e jogos numa falsa indiferença...

- Garotos - diz a vampira, também jovem, de cabelos loiros e ondulados. - Quem é que vai querer um pouco?

Ela abre a blusa de seu uniforme, impecavelmente dobrado e limpo, com todo tipo de firulas doentes e símbolos satânicos e políticos. Por dentro deles, exibem-se seus grandes seios brancos e rosados, erguidos por um sutiã preto que os apertava pra fora.

- Helena, controle-se - resmunga o vampiro.

Ela ri, fechando a blusa. Os dois seguem na minha direção, debruçando-se no balcão logo ao meu lado. Os ignoro o máximo que posso, numa mistura de tensão e ódio me queimando por dentro. A sensação horrível de não poder fazer nada - as piores aberrações do mundo, sorrindo a vinte centímetros do meu braço.

- Vamos lá - diz o rapaz, de feições delicadas. - O que é de melhor que vocês têm aqui?

O duende se aproxima, subindo num pequeno banco para ao menos enxergar acima do balcão.

- Nós temos vinho, senhor - ele responde numa cortesia artificial.

- Vinho! - o rapaz exclama, virando-se pra moça. - Eles têm vinho! - sorri, achando ridículo. - Que tipo de vinho seria esse…?

- Bem…

- Aliás, esquece - interrompe. - Me dá o que vocês têm de mais FORTE. Vamos lá, vamos ver o que vocês têm de mais forte nessa espelunca.

O duende sorri, não exatamente simpático ou sem jeito, mas aliviado de não ter que preocupar-se com a qualidade de suas bebidas vagabundas. Ergue uma garrafa sem rótulos, com um líquido transparente - onde flutua, intencionalmente, o pedaço de algum enorme tipo de inseto em fermentação.

- Essa é da casa - ele explica, botando mais dois copos no balcão.

A moça está rindo, debruçada no rapaz de pé ao meu lado. Ela morde os lábios de excitação, como que ansiosa pra uma grande aventura exótica. O duende abre a garrafa. Um vento fresco e alcoólico parece sair ali de dentro, com um cheiro terrivelmente forte.

- Nossa mãe - abana o rapaz, afastando o odor com seu jeito afeminado.

O duende sorri, dessa vez já com alguma simpatia menos dissimulada. Havia nele a inocente esperança de que tudo daria certo, e que aqueles vampiros logo sairiam dali bêbados e sem grandes problemas. Serve os dois pequenos copos. Arrasta-os na direção dos clientes, fechando a garrafa em seguida.

- Perparada? - pergunta o vampiro. 

Ao fundo, os orcs parecem circular pelo estabelecimento, como em busca de algo suspeito, provavelmente nada, mas gerando um desconfortável clima de tensão no lugar. O segurança-traficante, provavelmente de alguma facção de Mordingrad, apenas olhava tudo perfeitamente armado, ridículo, confuso e imóvel, ao lado da porta de saída. Ao meu lado, a moça sorri perfumada. Talvez com feromônios, talvez enfeitiçada. Uma sexualidade quase desesperada. Todos se entreolham, o casal sorri - ela faz que sim com a cabeça. O vampiro responde:

- Então vamos. 

Os dois viram os copos em um único gole daquela merda horrível, que os queima por dentro e desce ao estômago e sobe ao cérebro. Os dois sacodem a cabeça. Contorcem a cara numa expressão de desgosto. Com os olhos vermelhos e úmidos, o vampiro olha para o teto e dá um tapa no balcão, fazendo meu copo saltar. Ao fundo, os orcs estão sorrindo e de volta a seus afazeres. A vampira está gargalhando, com um olhar perdido e o mundo girando a sua volta. Os dois tossem um pouco e se recompõem. 

- Vamos lá - diz o vampiro. - Mais uma dose.

O duende se assusta. 

- O quê…?

- MAIS UMA DOSE, PORRA! - o vampiro dá um soco no balcão, com uma súbita expressão de ódio incontrolável. O desespero absoluto de ver algum inútil desrespeitar sua inquestionável autoridade.

O duende pega a garrafa imediatamente e começa a servir mais um copo. Mas de repente, o vampiro exclama com um olhar de desprezo e terror:

- Mas pelo amor de Deus, vejam só a cara desse retardado! 

Ele aponta o auxiliar. Todos no bar olham, a música perdida ao fundo sai um pouco do ritmo por um momento. A mulher já está rindo como uma prostituta bêbada e o vampiro a encara com um olhar assombrado e divertido, logo também caindo na gargalhada. O rapaz retardado fica confuso e eu sou tomado por um estranho sentimento de angústia. Ele tem uma expressão deprimente de completa incompreensão. Uma sensação horrível de impotência cresce dentro de mim, e em todos há a sensação ainda mais desesperadora de que havia começado. Alguma coisa, seja o que for, havia começado. E a qualquer momento, qualquer merda poderia acontecer. Poderia ser feita, ordenada, apontada às gargalhadas. E ninguém ia fazer nada.

Confuso, o rapaz abre um sorriso triste e deformado. O casal de psicopatas continua rindo ali do meu lado. Tão superficialmente pacíficos e alegres… tão piores do que aparentam…

Logo atrás, os orcs circulam risonhos observado a cena, distraídos com seus fuzis nos braços em meio a um bar com mais de 20 homens sujos e arruaceiros, brutos e homicidas, agora com expressões patéticas e vazias de impotência. Aquela gargalhada era pra todos eles. Pra todos nós. Mas agora, não havia mais um grupo ali - não havia mais uma unidade. Estava tudo acabado: éramos apenas indivíduos separados pelo medo, isolados em nossas mentes, desarmados e quebrados e sozinhos e confusos. Ninguém sabia o que fazer. Ninguém sabia o que o outro iria fazer. E tudo por causa daquele estúpido símbolo ridículo amarrado no braço, um símbolo patético cujo mero significado carregava uma força obscura, maior e mais violenta do que qualquer assassino naquele chiqueiro. O emblema de aspecto fascista e satânico começava a mostrar as caras - aquele sinal óbvio de que o pior estava longe de ter de fato começado. Uma mera viatura da polícia, em tempos antigos, diminuindo a velocidade diante de uma moça que volta pra casa de madrugada: "psiu, gostosa".

- Vem mais perto, garoto - diz o vampiro risonho, os olhos ainda molhados da gargalhada. - Deixa eu dar uma olhada nessa sua cara.

O rapaz demora uns instantes e se aproxima, com seu olhar abobado. A vampira sorri como se visse graça nos tropeços de um cãozinho aleijado depois de ser atropelado por uma bicicleta.

- Realmente detestável - o rapaz segura o rosto disforme na mão pálida. De repente sorri, com um tapinha no balcão: - Por que não? Vamos lá, tira esse cinto, tira essa blusa. Vamos todos dar uma olhada nesse espetáculo da anatomia contemporânea!

Posso sentir o perfume doce daqueles demônios. Meu coração começa a esquentar. Com aquela cena ao meu lado, apenas encaro o meu copo na minha frente com uma vontade incontrolável de esfaqueá-los. Não adianta. É claro que não adianta. Eles estavam ao meu lado e é claro que eu não podia fazer nada. 

Olho pra baixo e finjo que nada está acontecendo. Tento sumir, mas não consigo. Encho a boca de cerveja quente e engulo com desgosto num gesto ridiculamente falso de indiferença. Dentro do copo, o maldito reflexo: as mãos enormes e atrapalhadas daquele retardado tentando tirar o cinto de forma confusa. O patético duende se aproxima pra ajudar o colega a tirar as próprias calças encardidas. Parece alguém ajudando um débil-mental no banheiro dos deficientes físicos. O banheiro onde ele seria estuprado. O deprimente barulhinho metálico e ensurdecedor do rebater das fivelas em câmera-lenta. Aquela espingarda encostada ali do lado. Os vampiros sorrindo. O bar cheio. Aqueles quatro orcs. O traficante de metralhadora. Todo mundo olhando. Alguém tem uma faca. Mas ninguém vai fazer nada. Repetimos para nós mesmos: isso é só um retardado tirando a roupa.

De repente, tenho a visão - aqueles vampiros vão nos despir todos, nos colocar de costas na parede e nos mandar latir como cachorrinhos. Vão apalpar nossas bundas, homens e mulheres, rir das nossas caras, passar a mão em nossos corpos e ridicularizar nossas tatuagens rabiscadas. Jovens e adultos, velhos e crianças. Todos patéticos e humilhados como idiotas, envergonhados uns dos outros. A prostituta que fode estranhos toda noite, relembra agora a agonia de ser lentamente despida e tocada contra a vontade.

A noite está calma lá fora. Uma brisa morna e solitária. E a angústia, ali dentro, arde isolada. Uma senhora dorme em sua cama enferrujada, abraçando um terço. E no bar da esquina, todo mundo pelado com fuzil mirando na cabeça. Mas ninguém ia fazer nada. E o retardado finalmente começava a abaixar as calças.

Eles sorriem diante daquelas pernas magras, pálidas, e a cueca frouxa. Pensam em dizer alguma coisa. Quando então, inesperadamente, o inimaginável:

- Deixa o moleque - diz um elfo de repente.

O vampiro vira-se com um olhar surpreendido. Passa por um momento a mão no rosto anestesiado pelo álcool. Extremamente atordoado, recompõe-se num sorriso confuso:

- Oi…? - remexe a cabeça. - O que foi que você disse…?

- Deixa o moleque em paz - repete o elfo com firmeza.

O vampiro continua com seu sorriso perdido, incapaz de compreender o que estava acontecendo. O elfo então se levanta bruscamente, arrastando sua cadeira e soltando uma frase que ele havia decorado há poucos segundos e fermentava no peito:

- Você não pode chamar ninguém de retardado se você nunca viu o seu próprio rosto estúpido no espelho.

E assim, ele havia decidido que iria morrer. Havia acabado de cometer suicídio e morreria ali mesmo na frente de todos. 

Pode parecer estúpido, mas a verdade é que aqueles vampiros acabaram de ser profundamente humilhados. Não. Não é apenas isso. Aquilo não era apenas um mero desrespeito intolerável à autoridade do Império - aquilo era uma provocação à maior e mais íntima perturbação de um vampiro; sua estúpida aparência ridícula de poder, retidão e ordem. Acreditem: é algo dolorosamente pessoal pra esses demônios perturbados, a única coisa que é capaz de atormentar o que lhes resta como alma. Seu lado humano. O mundo antes de ser vampiro. O grande trauma por trás do psicopata doente que estrangula mulheres por ter sido molestado pelo avô. O grande truque que lhes quebra por dentro. 

Como qualquer um sabe, esses seres vivem a inconveniente condição de nunca mais serem capazes de se ver diante do espelho. Apenas nós vemos seus reflexos, mas eles próprios são incapazes de verem a si mesmos. E isso, num mundo estúpido de status e futilidade, é um problema pessoal traumático, terrível e perturbador, que todos os vampiros compartilham e ignoram em suas rotinas ridículas, o suficiente pra enfeitarem com espelhos inúteis seus enormes casarões. O que o elfo havia feito, afinal, era basicamente a única forma de uma pessoa qualquer, imunda e ignorante, atingir e ferir por dentro uma aberração sem sentimentos. É assim que se humilha uma besta que não se importa. É assim que se provoca um demônio frio e sem coração. Porque na verdade, aquilo não era apenas uma provocação - era a horrível relembrança dos traumas da realidade: esses vampiros, em todo seu Império de riqueza e poder, são na verdade miseráveis. São demônimos amaldiçoados. Rancorosos e amargos. E obviamente, essa relembrança numa noite de sangue não iria sair barato. 

- É isso mesmo - reafirma o elfo, convencido de seu suicídio. - Vampiro de merda, com cabelinho de merda, uniformezinho de merda. Acompanhado de uma puta barata de merda, chupadora de mercenários, que mostra o peito pra qualquer vagabundo porque nunca conseguiu vê-los diante do espelho. Dois vampiros de merda que saem do vazio de seus apartamentinhos pra conseguirem aprovação de uma cambada de favelado. É isso aí que vocês querem, não é? Cês acham que tá todo mundo aqui achando vocês fodas com seus uniformezinhos lisos e bem dobrados. Seus cuzinhos perfumados. Duas putinhas do Império fazendo turismo no fim do mundo pra receberam aplausos e beberem sangue de vagabundo. Realmente louvável. E ainda querem chamar os outros de retardado. Uma salva de palmas para esses dois…

O elfo abre um largo sorriso irônico e bate palmas, parecendo ter entrado num estágio de completo enlouquecimento. Todos olham pra baixo. O vampiro ouve tudo em silêncio, profundamente perturbado e sem ter a menor reação além de encarar aquilo paralisado. Os orcs ao fundo não sabem o que fazer, e parecem estar sinceramente aterrorizados com a reação do elfo, como se ele estivesse sob efeito de algum encantamento intocável. 

- Pode falar, pessoal - ele continua risonho e trêmulo, virando-se a todos. - Todos vocês sabem que não tem porra nenhuma debaixo dessa roupinha babaca e penteadinhos de merda. Dois pálidos fracassados, querendo aprovação de vagabundos que são cinco vezes os seus tamanhos. Vamos lá, galera, todo mundo aplaudindo. Todo mundo pagando pau pro embleminha do Império.

Ninguém ousa reagir de forma alguma. A música já havia parado faz tempo e o vampiro pisca aflito quando o suor de sua testa escorre aos seus olhos transtornados. A mulher vampira não faz nada, apenas encara o chão e observa o companheiro em um breve estado de sobriedade. Por um momento, ali do lado, ela parece até mesmo um ser humano.

- Vem - provoca o elfo. - Vem aqui, pode me matar, seu merda - lágrimas estão escorrendo do seu rosto. - Manda aí os seus cachorrinhos me encherem de bala porque eu falo a verdade que ninguém nunca vai ter coragem de falar na cara. Vem me apagar pra esquecer a MERDA que é a sua vida.

De repente, ele atira uma garrafa. Tudo acontece muito rápido. A garrafa é paralisada no ar diante da cara do vampiro, logo depois caindo no chão num estranho efeito gravitacional. O rapaz pálido estica o braço: o elfo é lançado na parede com as mãos no pescoço. Ele arrasta até o teto, sufocado, derrubando um porta-retratos velho. Ele flutua no ar. Arrasta agora pelo teto até o outro lado do bar, batendo na parede oposta. O vampiro se ergue, com um olhar sério e transtornado. Na ponta de seu braço, a mão pálida se contorce em algum tipo de truque obscuro. Ninguém pode compreender aquele espetáculo grotesco e tudo parece ser tomado por sombras numa inexplicável ventania quente. As luzes falham. Os orcs que estão igualmente assustados. Seguram firmes suas metralhadoras enquanto cachorros abandonados começam a latir e ganir em pânico do outro lado da rua. O elfo estrangulado por uma mão invisível balança as pernas no ar e se contorce em pleno teto como se rastejasse envenenado pelo chão, agarrando a própria garganta já roxa e repleta de veias escuras. Sangue escorre dos seus olhos.

E de repente, ele cai no chão sob o efeito natural da gravidade. As luzes reacendem. O vampiro vai até ele em passos largos, abaixa-se a seu lado e puxa o elfo pelo rosto. O rapaz tosse no chão com o rosto ensanguentado. Do lado de fora, os cachorros ainda latem, atordoados, alguns uivando.

- Onde está o seu Deus? - pergunta o vampiro. - Hein? Onde está o seu Deus, quem é que diz que você está falando a verdade…?

- Deus não existe - responde o elfo. - Eu apenas sei que você sabe a verdade.

- Isso NÃO é a verdade - diz o vampiro, virando-se pra todos. - ISSO NÃO É VERDADE!

A moça se aproxima correndo. O rapaz grita enfurecido, sem que ela diga nada.

- Você cala a sua boca, sua piranha! - ele se levanta, largando o elfo tossindo no chão. - Quem é que vocês pensam que são!? - ele dá de ombros, confuso, virando-se pra todo lado. - Vocês acham mesmo que NÓS precisamos da aprovação de VOCÊS!? É isso mesmo!?

Ninguém diz uma palavra. A banda está imóvel no palco.

- Isso aqui - o vampiro ri, recuperando sua embriaguez e olhando ao redor. - Isso aqui… isso aqui é um zoológico! - ele dá de ombros. - Vocês acham que ALGUÉM no Império se importa com essa MERDA de zoológico…? Alguém aqui, por acaso, vai ao zoológico esperando ser… eu não sei, apaludido por MACACOS…!?

Ninguém diz nada e o vampiro vira-se pro duende, em cima do banquinho, com o rosto ainda visível por trás do balcão.

- Você - ele aponta. - Você vai ao zoológico pra conseguir, sei lá… a aprovação de de girafas…!?

O duende faz que não com a cabeça, mas obviamente nunca havia visto na vida um zoológico, a não ser algum filme de séculos passados. De repente, o vampiro começa a rir e vira-se de volta ao elfo que se contorce no chão. Os latidos já pararam. As coisas logo estão estranhamente cruas e reais, como se tivéssemos acordado de um sonho e apenas agora percebêssemos que isso era o mundo real em seu verdadeiro estado, vagamente normal. Tudo está de volta em silêncio num ambiente surpreendentemente calmo. 

Ele tosse. Logo ali, se contorcendo com o rosto ensaguentado no chão, o elfo era o nosso mártir. Por um momento, eu havia tido a certeza de que tudo iria piorar e seríamos vingados e humilhados num espetáculo doente e imbecil de reafirmação de autoridade. Mas aquele vampiro imaturo não teria coragem. A vampira, obviamente, não mandava em nada. Eles estavam em xeque. E vingar-se de todos já parecia uma impossibilidade, um fracasso maior do que ouvir aquilo e não fazer nada. Com um suspiro, o vampiro tira um lenço do bolso e seca o seu rosto suado.

- Vamos lá, voltem a tocar - ele aponta pra banda, mais calmo, virando-se pro elfo no chão.

A dupla da banda fica confusa e orc se aproxima:

- Toquem alguma coisa aí - ele mira o fuzil na cara do guitarrista. 

A banda retorna imediatamente e toca um grunhido instrumental qualquer. O vampiro ainda observa o elfo tossindo no chão e pisa delicadamente em sua garganta. As pessoas subitamente parecem não estar mais prestando a menor atenção, e um grande cachorro preto e estranho invade o bar de repente, com os olhos vermelhos, sentando-se calmo ao lado do vampiro.

- Olha só pra você agora… parece uma fadinha numa gaiola, não é?

O vampiro faz um sinal a um dos orcs.

- Markus, me dá o seu fuzil.

O orc se aproxima sem pressa, entregando a arma pesada. O vampiro respira fundo, depois de apreciar o armamento. 

- Eu poderia te torturar - ele explica. - Eu poderia te levar pra qualquer quartinho num centro de detenção do Império lá fora. Eu poderia fazer qualquer porra que eu quisesse com você, mas eu não vou - ele sorri. - Eu poderia torturar você pelado com choques elétricos, com a cara enrolada no arame farpado tentando se equilibrar numa pedra de gelo com uma estaca de ferro enfiada no seu cu eletrocutado... e eu poderia te fazer comer merda pelo resto da vida e lamber o meu saco, chupar a minha porra com seus olhos vendados e os braços quebrados e amarrados pra trás e você teria que dizer que está gostando. Até um dia, quem sabe um dia realmente aprender a gostar - ele suspira. - Mas eu simplesmente não vou, elfinho. Eu simplesmente não vou fazer nada disso, porque isso é exatamente o que eu já faço todos os dias com os filhos da puta e traidores do próprio Império durante toda a minha vida. Mas você…? Você não é nada Você entende isso? Você não é porra nenhuma - ele explica. - E sinceramente, eu acho que nem teríamos vaga pra você lá dentro - ele força um sorriso, estranhamente simpático. - Com vocês aqui fora, meu amigo… ninguém tá pouco se fodendo.

Subitamente, um jorro de disparos estoura na ponta da metralhadora. Vinte e quatro balas quentes atravessam o rosto daquele elfo que havia se matado minutos atrás. O sangue se espalha pelo chão como um balão de sangue estourado, e o piso vagabundo está furado e fumegando pelas balas perdidas. 

O vampiro devolve a metralhadora. Os respingos de sangue élfico começam a ser tomados por uma poça maior que cresce debaixo daquele crânio arrebentado. O queixo caído, os dentes pendurados. O rosto é uma massa incompreensível de algo avermelhado. O cérebro escapando, o couro cabeludo amassado, um aquele crucifixo no pescoço afogado no próprio sangue. O vampiro suspira fundo e coloca os cabelos escuros pra trás...

- Tirem a roupa dele - aponta pra dois orcs, que avançam imediatamente no cadáver. - Tá vendo aquela viga de madeira ali? - Ele aponta pro teto. - Eu quero esse merda pendurado aqui no meio dessa gente de cabeça pra baixo. O sangue pingando na mesa de todo mundo pra essa gente porca se lembrar quem é que manda na festinha de hoje. VOCÊS TÃO OUVINDO?

As pessoas olham pra baixo, sem fazer ou falar nada, mas confirmando a atenção obediente.

- Vocês dois toquem direito qualquer merda de música. VAMOS, GENTE! - ele bate palmas. - Isso aqui é um boteco ou não é!?

As pessoas se entreolham e logo voltam conversar imediatamente. Não posso nem imaginar sobre o que já estão falando. Os jogos voltam a fluir. Os dados voltam a rolar. Os cigarros se reacendem. Aquele cão estranho e escuro circula ali dentro, completamente ignorado por todos.

Os orcs, que arrumaram uma corda em algum lugar, logo estão erguendo o corpo do elfo pelado e ensanguentado, ali na frente de todo mundo com a estúpida ajuda do indivíduo de metralhadora enferrujada. Um dos orcs, grande e careca, guarda o crufixo ensanguentado no bolso do próprio colete. Chega a ser ridículo ter a certeza de que aquele exato pingente estaria em breve sendo vendido por 5 contos em alguma esquina de própria cidade de Mordingrad.

- Hoje é por conta da casa! - exclama o vampiro erguendo uma garrafa.

E então, foi apenas isso. O nosso herói pendurado morto sobre as nossas cabeças e aquele ambiente terrivelmente doentio, mas ainda assim com indivíduos brutos e intoxicados o suficiente pra conseguirem fingir se divertir e conversar como pessoas normais. Aquele corpo de cabeça pra baixo balançando no teto, e um grupo de anões tentando ignorar e agir normalmente enquanto gotas de sangue élfico pingam e seus baralhos.

Os vampiros logo estão bebendo de novo aquela coisa horrível. Estão de volta, logo ali ao meu lado, e o rapaz de rosto deformado sorri como um idiota, servindo seus fregueses sem entender porra nenhuma do que estava havendo e já vestindo suas calças de novo. O cachorro escuro senta-se calmo.

Começo a sentir náuseas. Queria levantar e ir embora, mas acho que não teria coragem de lhes chamar a atenção. Me sinto sentado há horas ao lado daqueles vampiros, até que um humano se aproxima do casal vestindo um shortinho minúsculo e ofertando seus serviços. 

- Querem alguma diversão pra noite…? 

Era um garoto de programa moreno, de cabeça raspada e lábios carnudos. Seu corpo é desnutrido mas bem definido. Me parece sujo. O vampiro considera. A vampira avalia. De repente, o vampiro responde:

- Não, obrigado. Talvez se você fosse maiorzinho. R-R., vem aqui - um dos orcs se aproxima. - Leva ele lá pra fora. Arranca a cabeça dele, coloca num saco no porta-malas. Eu quero essa bichinha no café-da-manhã.

A vampira ri. O garoto moreno não entende o que está havendo e seus lábios ficam brancos. Um dos orcs o puxa pelo braço, e ele segue confuso pro lado de fora, encarando o vampiro como se esperasse alguma resposta ou um anúncio de que fora apenas uma piada. O demônio o ignora com indiferença. Estou confuso. Perdido num mundo paralelo em que parece que apenas eu existo. Não sei quanto tempo passa e o vampiro volta a olhar o homem de aspecto retardado. Sorri mostrando os caninos, já completamente bêbado.

- Você, você... essa carinha de idiota...

Ninguém no bar está olhando, e apenas eu presto atenção como se estivesse vivendo em um buraco negro. O vampiro bêbado sobe no balcão, suado e descabelado, abrindo zíper da calça e botando um pau branco e flácido pra fora.

- Vem aqui - ele diz. - Me dá uma chupada, vamos ver se agora alguém reclama.

O duende sente seu corpo gelado e murmura o nome do infeliz, puxando-o pelas calças largas. O deformado se aproxima atordoado, sem entender o que estava havendo e encarando aquele membro com um olhar estúpido de medo. É surreal. Está tudo rodando e eu já nem sei se estou vendo isso mesmo ou se estou bêbado ou amaldiçoado por estar ao lado daqueles monstros por tempo demais. Começa ali a se desenrolar uma doente cena de abuso sexual. Eu tento olhar ao redor como se pedisse socorro. Ninguém repara. Está na frente de todo mundo, e apenas eu e o duende estamos vendo um débil-mental com um pau mole na boca e um vampiro sendo chupado. Num último apelo, encaro o cadáver do elfo erguido no teto daquela merda. Ele não ia fazer nada.

- Vem aqui, porra - insiste o vampiro. - Abre essa sua boquinha torta, vem, lambe o meu saco...

Ele estica a mão pra puxar aquele enorme deformado débil pelo cabelo e de repente resmunga:

- Foda-se - coloca o pau mole e babado pra dentro. - Eu não preciso de um retardado me chupando. Helena, mostra o seu peito pra esse cara do lado.

Sem mais nem menos, uma onda de adrenalina: o cara do lado era eu. O vampiro salta do balcão de volta ao chão, se desequilibrando por um momento e caindo sentado. Um dos orcs corre e o ajuda a se levantar. A vampira vira-se pra mim desabotoando a blusa, obediente. Eu não quero me sentir atraído por uma puta fascista e apenas a encaro nos olhos, confuso e assustado. Eu devo tocá-los? Eu devo fazer alguma coisa? Um aroma doce parece subir de seus peitos e eu não sei como devo reagir e começo a ter uma certa convicção de que estou alucinando. O vampiro resmunga rapidamente:

- Ah, por favor. Mais um viado nessa cidade. NINGUÉM SE HABILITA? - ele vira-se num berro. - Não tenham medo que hoje ela é por conta da casa!!

Eu me levanto imediatamente antes que ele ordene um orc me levar pro carro e me jogar num canto, decapitado. Deixo uns trocados no balcão e caminho discreto pro lado de fora. Algo muito estranho estava acontecendo. A vampira me encara. Eu olho pros seus peitos por um momento e ela parece querer sexo desesperadamente. Eu tenho certeza de que ela queria mesmo dar pra mim, um homem imundo de barbas sujas. Me encara com um olhar de tesão quase irresistível, mas eu sinto claramente que tudo aquilo é apenas pra me confundir e me arrancar a cabeça do pescoço e me chupar o sangue pelas artérias. Definitivamente havia uma força obscura invadindo o meu cérebro. Não sei se aquilo era um truque, envenenamento ou algum tipo de dispositivo eletrônico. Por um momento estou disposto a morrer pra lamber aqueles peitos, chupar aqueles mamilos, meter a mão naquela buceta rosada, e instintivamente saio daquele lugar horrível sem sequer entender a desgraça que estava pra acontecer pelo resto daquela noite quente.

Uma orgia de vagabundos. Era isso. Aquela gostosa nua em cima de cartas e cinzeiros. O vampiro dando risada, bêbado e suado - o penteado descabelado. A mulher na mesa grunhido de tesão como uma succubus. Um homem no chão sendo comido por um pau branco e rosado. O pescoço sangrando. As luzes piscando, rostos ensaguentados. Um transe satânico de luxúria pra morrerem todos afogados em sexo. Passariam horas e horas e três ou quatro homens acordariam abandonados e confusos ao final da madrugada, catando no chão as suas roupas manchadas de vermelho e as notas amassadas do dinheiro do Império. O cadáver já branco pendurado no teto. Uma prostituta com o rosto inchado e os joelhos quebrados. A maldição aos poucos perdendo seu efeitos. Homens estuprados. Corpos no chão gemendo e acordando com os pescoços furados. E o dia, do lado de fora, amanhecendo - calmo e bonito. O cachorro preto, em algum canto, ali sentado.

Em meio a esse presságio, fujo dali enquanto posso. Desço alguns degraus e saio na noite que já parece fresca e confortável fora daquele inferno. Escuto um rapaz chorando, soluçando discretamente, e vejo o garoto de programa algemado num canto, com hematomas no rosto e o nariz sangrando. Troco olhares com o orc de coturno ali fora. Ele julga que não tem motivos pra me impedir de sair. O rapaz me encara com os olhos inchados. Olho pra baixo e vou embora.

Vago por aquelas ruas escuras e tenho a vontade de matar alguém. Sinto uma força horrível me invadindo o corpo, um desejo sexual completamente inexplicável e um certo medo de estuprar uma garota qualquer que passasse pela minha frente. Estou claramente enfeitiçado e os cachorros rosnam pra mim. Pessoas encaram pela janela. Acordadas pelas luzes piscantes, latidos e disparos, sabiam com certeza de que algo de muito errado havia chegado naquela cidade. E de repente, com uma voz fraca, uma cabeça de bode abaixada em uma esquina:

- Você pode me dar uns trocados…?

O velho fauno sentava num papelão, enrolado num cobertor ao lado de uma tigela com ração para gatos. Eu não tenho quase nada, mas dou a ele os meus últimos trocados. Um gatinho mia para mim.

- Você vai ver, Samael…

Eu ignoro que ele sabe o meu nome. Devia ser algum tipo de vidente cigano. Encaro aquela figura de barbas brancas ali no chão, seus chifres crescendo encaracolados e os olhos na horizontal como os de uma ovelha. Sinto-me confuso e estranhamente purificado. Paro um momento para escutar…

- Você vai ver, Samael… 

Ele repete. Um gatinho sobe delicadamente por um de seus ombros...

- Uma força terrível se aproxima de Mordingrad…

Me sinto angustiado e olho para os lados com vontade de chorar. 

- Você está atrasado - suspiro. - Eles já chegaram.

Coloco aos mãos no bolso e viro as costas para o fauno. Não me sinto mais tonto. Vejo aquele cachorro escuro de novo, vagando pelas ruas escuras e desaparecendo. Ele não me parecia mais tão anormal. Alguns vira-latas o seguiam. Por um momento, ele cutucou um saco de lixo desinteressado. E então sumiu na escuridão.

Minutos mais tarde, chego ao meu quarto com a roupa fedendo a cigarro e perfume do Império. Jillhorn se aproxima de pijama.  

- O que está acontecendo? - ele pergunta.

- Tem vampiros na cidade.


Ele diz que havia consertado o chuveiro elétrico, e que eu devia pegar algo na geladeira. Eu agradeço. Estava precisando de um banho.


***

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