sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Teoria Literária - Psicanálise & Interpretação Textual

(Trabalho de Teoria Literária, relacionando Psicanálise & Interpretação Textual)
OBS.: cortei uma parte excessivamente específica do trabalho, que o deixaria monótono. Mas o tema que interessa permanece intacto (exposto principalmente na seção "Psicanálise e Literatura"). O trabalho foi feito com Thaís Perestrelo. Voilá...

INTRODUÇÃO

Traçando-se relações entre os estudos de Sigmund Freud e a obra "O Alienista", de Machado de Assis, pode-se explorar não apenas as noções de sanidade e loucura, como também a essência do conceito de interpretação - tanto no contexto psicanalítico, quanto na própria narrativa literária.

Os paralelos entre Freud e o personagem Simão Bacamarte, protagonista na obra de Machado, não são difíceis de perceber - tratam-se ambos de "alienistas", médicos estudiosos das doenças da mente. Mas, além disso, são ambos personagens, um real e outro fictício, cercados de possíveis paradoxos e diferentes camadas de compreensão. 

Enquanto Freud desenvolve um metódico modelo de interpretação para a compreensão do que está implícito em um sonho, uma obra literária como "O Alienista" é esse próprio sonho, no sentido de que, por trás de uma narrativa superficial, escondem-se verdadeiras motivações e questionamentos. 

Aqui, relacionam-se sonho, literatura, política e ciência, de forma a delinear suas variadas interações.





PSICANÁLISE E LITERATURA

Os desdobramentos da interpretação do sonho de Freud, tal como a essência da psicanálise, se baseiam especialmente no impulso irracional, no desejo reprimido, no inconsciente. Além disso, é claro, existe também o desejo consciente, racional, que manifesta-se tanto em um sonho, quanto em uma obra literária. Ainda assim, na metodologia psicanalítica, tende-se a focar no que está escondido, no não-dito, e isso se reflete na literatura de diferentes maneiras.

Em primeiro lugar, ao se negar o completo controle e autoridade de um sonhador sobre seu sonho (por conta de seus impulsos mais profundos e reprimidos), nega-se também o completo controle e autoridade de um autor sobre sua própria obra. Sonhos, assim como textos literários, são frutos diretos e extremamente pessoais de mentes específicas - mas ainda assim, nenhuma dessas mentes têm a plena consciência do significado de seus produtos mais íntimos. Em outras palavras, as criações de um autor ou sonhador não necessariamente expressam seus desejos e intenções conscientes e explícitas, e sim algo maior e misterioso, que cabe apenas à especulação alheia. O criador, agora, torna-se apenas uma testemunha como todas as outras, diante de sua própria criação.
Graças a essa ausência de limitações autorais e autoritárias, há uma enorme riqueza de interpretações para toda e qualquer obra literária, muitas das quais não podem ser sequer consideradas mais ou menos verdadeiras do que as outras. Por vezes, trata-se até mesmo de uma questão intencionalmente deixada em aberto pelo autor. Um caso conhecido, por exemplo, pode ser retirado de outra obra clássica de Machado de Assis, "Dom Casmurro", em que nunca se estabelece por definitivo se o protagonista foi ou não traído por sua esposa, Capitu. Já em outros casos, há também uma possibilidade diferente: o autor, pessoalmente, discorda da mais popular interpretação de sua própria obra, como por exemplo Geogre Orwell (“A Revolução dos Bichos”, 1984) que, quando em tempos de Guerra Fria, teve seus livros popularizados como meras críticas ao comunismo. Nesse contexto interpretativo, após a exposição de uma narrativa, ela fecha em si própria, tornando-se livre e independente dos desejos e opiniões de seu narrador.

É importante ressaltar, no entanto, que apesar de toda essa pluralidade de interpretações independentes, a gama de possibilidades de sentido permitida pela metodologia psicanalítica não é absolutamente ilimitada - ela está restrita, paradoxalmente, aos limites do próprio texto, das próprias palavras que compõem e expõem uma narrativa. As especulações, mesmo sobre fatores subliminares, só são lógicas quanto diretamente pautadas sobre os dados concretos de uma tal narrativa - seja ela um relato verdadeiro, uma obra literária, ou um sonho. Sendo assim, ao mesmo tempo que a metodologia psicanalítica expande as significações para além do superficial, ela não tem nada além do superficial para atingir suas mais variadas conclusões. Conforme cita Lacan, referenciando Gide em “Moedeiros Falsos”: "não há nada mais profundo do que o superficial". Portanto, nesse sentido, só se pode atingir o que está escondido através de um estudo minucioso, justamente, do que está exposto. E mais uma vez, a psicanálise vai de encontro direto à teoria literária.

Na literatura comparada, por exemplo, estuda-se justamente obras em seus detalhes mais ínfimos. Compara-se, justamente, aquilo que passa despercebido de tão profundo e enraizado em diferentes culturas. O explícito, certamente, é importante. Mas o que está implícito (seja por ter sido escondido, seja por ser julgado óbvio) é o que há de mais expressivo e revelador com relação aos verdadeiros valores de diferentes épocas e lugares - ou, no caso da psicanálise, o que há de mais expressivo e revelador sobre as pessoas.


O SONHO DE FREUD

“O sonho é a realização de um desejo.” Com essa afirmação, Freud afirma que os sonhos não são frutos do acaso ou coincidências, mas que cada elemento presente é a representação de desejos e temores conscientes e inconscientes. Desejos e temores estes, encobertos pela auto-repressão da vigilância, e expressos de forma codificada no sonho. 
No caso pessoal que Freud nos relata, vários de seus desejos mais íntimos são revelados. Os dois principais personagens no sonho eram, justamente, os dois maiores objetos de frustração de Freud - e nesse ambiente fantástico, suas frustrações podem ser, finalmente, aliviadas.

Como alicerce básico de toda a análise, toma-se o segundo capítulo do livro “A interpretação dos sonhos” de Freud. O capítulo é estruturado em três partes: O preâmbulo, onde Freud contextualiza o sonho, contando suas experiências em vigilância que culminaram no sonho; a narrativa do sonho, que é a transcrição do sonho feita ainda sem censuras ou grandes interpretações; e a análise do sonho, onde ele destrincha e interpreta, não somente o sonho, mas sua própria transcrição. 

(…)

Enfim, através do sonho de Freud, vemos que o sonho revela e organiza em forma metafórica o que a mente alerta não se permite revelar. 


"O ALIENISTA" DE MACHADO DE ASSIS

No texto "O Palimpsesto de Itaguaí", de Luiz Costa Lima, apresenta-se a ideia de uma narrativa como um palimpsesto: uma obra cuja primeira escrita "muitas vezes era rasurada para que uma segunda se despusesse sobre as apagadas". Ou seja: tal como a análise de um sonho, deve-se analisar O Alienista de uma segunda forma, mais profunda, onde se estuda a verdadeira mensagem da história por trás de sua trama superficial.

Conforme já foi sobressaltado, é impossível encontrar uma interpretação definitiva para uma história. Mas, através de uma análise sensata de fatos explícitos em uma narrativa (assim como seu contexto histórico e cultural), é possível especular suas verdadeiras mensagens acerca do tema tratado - no caso de O Alienista, a ciência, o poder e a loucura.

Já desde o Século XIII, Johnathan Swift, referenciado no texto de Costa Lima por seu ensaio "A Serious and Useful Scheme to Make an Hospital for Insanes", já abordava temas parecidos e de maneira similar. Mais conhecido por sua obra "As Viagens de Gulliver" (1726), Swift é reconhecido por seu domínio da sátira, utilizando um tom irônico e jocoso para expor sua ácidas críticas políticas e sociais. Da mesma forma, faz Machado de Assis através da história de Simão Bacamarte, usando o humor e o absurdo para sublinharem suas críticas e observações sobre os valores de seu tempo.

Em poucas palavras, "O Alienista" narra a história de Simão Bacamarte e as repercussões de sua peculiar postura científica na cidade de Itaguaí. Criando a chamada Casa Verde, uma espécie de hospício, o estudioso levava centenas de pessoas que, ao julgar loucas, as aprisionava e analisava sob condições nunca mencionadas claramente. Aos poucos, então, cresce a revolta do povo comum, que sob a liderança do barbeiro Porfírio, tenta derrubar aquela "Bastilha da razão humana". 

A retórica, então, mesmo que sofista, passa a ter papel ainda mais crucial na história: Bacamarte justifica seus feitos por sua posição de autoridade científica, enquanto Porfírio faz uso de um discurso estimulante, includente e revolucionário, para recuperar e incitar os revoltosos confusos. Começa, então, a chamada Revolta dos Canjicas. Entretanto, apesar dos rebeldes saírem vitoriosos, Porfírio havia sentido "despertar em si a ambição do governo" tal como aprendido o poder da eloquência, e utiliza-se da sua posição de líder para unir-se ao médico alienista:

"A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no animo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer." 

Dessa forma, a história expõe o relacionamento questionável entre o poder político e a ciência. Enquanto Costa Lima interpreta o personagem de Simão Bacamarte como crítica a uma ciência tosca e ineficaz, a história de Machado de Assis é acima de tudo uma crítica à retórica, aos paradoxos do raciocínio extremamente metódico e da fala eloquente. Interessantemente, o próprio Simão Bacamarte parece culminar suas conclusões científicas nessa exata mesma questão: sua loucura era, na verdade, o "perfeito equilíbrio das faculdades mentais", o que o leva a vítima da própria ciência - Bacamarte acaba por soltar todos os loucos, e internar-se a si mesmo. 

De certa forma, então, mesmo que de forma absurda e irônica, Simão Bacamarte acaba como um mártir da ciência. O alienista, se interpretado como um personagem moralmente aceitável apesar de seus extremismos, não seria um manipulador sorrateiro, e sim um manipulado ingênuo dentro de sua própria lógica. Afinal, a ciência não é culpada dos males que, em nome dela, são causados no rumo da história e das sociedades por interesses paralelos. E dessa forma, ao acabar preso enquanto os corruptos e desequilibrados vivem livres, a história poderia ser interpretada até mesmo como uma crítica não à ciência, mas à infeliz ingenuidade da dedicação científica quando hiperfocada, interesseira, e portanto cega. 

CONCLUSÃO

As relações entre psicanálise, literatura, política e ciência são inúmeras. Através da metodologia Freudiana de análise de sonho, pode-se refletir sobre uma visão interessante da interpretação de textos literários. E com o exemplo de O Alienista, de Machado de Assis, pôde-se observar o funcionamento de uma análise mais profunda e abstrata, dentro de temáticas parecidas com os estudos de Freud sobre loucura e sanidade. Dessa forma, revela-se uma interessante trama de ciência e poder político na história de Machado, cujo papel da retórica e o valor da comunicação verbal são novamente explorados.


Afinal, esse exato texto que aqui termina, tem também um possível paradoxo: utiliza-se da intepretação de textos de Freud e Machado de Assis, mas observa que toda interpretação profunda é questionável, múltipla e digna de discussão - seja na interpretação de sonhos e na psicanálise de Freud, nos conceitos embaçados de sanidade e loucura na obra de Machado de Assis, ou na própria narrativa literária como um todo. No final, a força motora por trás de todos esses temas, é o texto.



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